Existe narrativa para uma terceira via?
Humberto Dantas[i]
O mundo passou décadas observando a disputa eleitoral entre esquerda e direita. As razões para tal divisão justificaram uma Guerra-Fria entre o fim da II Guerra e o início dos anos 90, quando a globalização passou a ser novidade. Com ela, uma onda de (re)democratização de diversos países, onde esquerda e direita continuaram se digladiando.
Nesse instante, dois movimentos merecem atenção: a ideia de que deixamos de votar em algo, para votarmos contra alguma coisa, ou mesmo deixamos de votar desiludidos com representantes, somado à oportunidade de que para esta crise de afastamento respostas estariam numa TERCEIRA VIA. O conceito formalmente cunhado na academia foi vivenciado em algumas nações. A ideia central: (re)encantar o eleitorado com algo capaz de mesclar os endurecidos campos da direita e da esquerda, associando bem-estar social e presença do Estado à garantia de propriedade e livre iniciativa. Isso ocorreu nos anos 90.
No Brasil o fenômeno foi Fernando Henrique Cardoso. Itamar Franco, ao substituir Fernando Collor após impeachment, construiu governo de convergência, contra a mega inflação, buscando equilíbrio econômico. O Estado presente sem “ameaças” socialistas, somado às características de realidade deram ao CENTRO, ou à terceira via, o sucesso eleitoral.
A partir de então, as eleições brasileiras ensaiaram embates entre centro e esquerda, com uma direita envergonhada. Lula, quando acendeu ao poder a partir das eleições de 2002, não foi exatamente um governo de esquerda, mas caminhou ao centro e empurrou adversários para uma direita diminuta que só reapareceu quando vocalizou radicalmente a onda de acusações graves ao PT. O centro se esvaziou e passamos a compreender que o conflito adensado entre estas partes é e foi útil para ambos. Lula x Bolsonaro, esquerda x direita, progressistas x conservadores dão o tom desde 2018, sob ensaios de 2014. Pronto. Mas haveria espaço para uma nova edição da terceira via?
Primeira resposta: esse é o sonho de alguns brasileiros cansados de radicalidades. Pesquisa Quaest realizada após o primeiro turno de 2024 sugere como isso ocorreria: Lula marca 32% na corrida pelo Planalto, Pablo Marçal, o neo-radical que sugeriria que Bolsonaro é menor que o bolsonarismo teria 18%, e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, 15%. Sobra um terço. De abstenção ou de expectativa em relação à terceira via? Esta, por sua vez, seria uma novidade ou é Tarcísio revisitado?
Olhar para a disputa de 2024 em São Paulo ajuda. Marçal (PRTB) é a direita, Boulos (PSOL) a esquerda. Ricardo Nunes é o centro? O apoio envergonhado de Bolsonaro à reeleição do prefeito aqui parece ser menos importante, mas pode ser um ensaio. O envolvimento direto de Kassab ao nome de Tarcísio também é sinal para além do radicalismo à direita. A fala do presidente nacional do Progressistas, Ciro Nogueira, sobre o brasileiro estar cansado de radicalidades é importante. O levantar de voz de Bolsonaro dizendo que sem ele não existe opção à direita é mais um demonstrativo, nesse caso de desespero. Mas algo muito mais complexo parece servir de baliza para o pleito futuro: se em 1994 o controle inflacionário e o equilíbrio econômico foi o monstro que despertou a demanda pela terceira via, o que seria capaz de trazer uma novidade dessa monta à realidade? Não basta o interesse de partidos que não convergem, tampouco o sonho despreocupado de quem quer inventar mártires sem grande investimento em perceber as complexidades da política. No frigir dos ovos, a depender do que temos hoje, a estafa com a polarização é mais capaz de produzir nova rodada de votos na esquerda para evitar a direita, e vice versa, reforçando a polarização, e mais um tsunami de abstenções. Estamos em busca de um salvador alternativo, mas também de um problema que nos faça crer que abandonar as extremidades faça sentido.
Efeitos da eleição de Trump para o Brasil
Guilherme Casarões[ii]
A eleição de Donald Trump, oficializada em 6 de novembro, recebeu grande repercussão na imprensa e nos meios políticos e acadêmicos brasileiros. Duas foram as indagações mais comuns: como o retorno de Trump à Casa Branca afeta a correlação de forças na política brasileira? E como o novo governo americano conduzirá suas relações com o Brasil?
Com relação à primeira pergunta, é fundamental dizer que a eleição do Republicano faz parte de uma onda global de extrema direita que vem ganhando terreno no mundo ao longo da última década. Considera-se que primeira vitória de Trump, em 2016, tenha marcado o início desse processo, junto com a saída britânica da União Europeia (“Brexit”).
O novo triunfo de Trump animou movimentos de extrema direita pelo mundo. Santiago Abascal, líder do partido espanhol Vox, afirmou haver um “vento de mudança” no Ocidente[iii]. O presidente argentino, Javier Milei, chegou a participar de um evento ao lado já eleito Trump e propôs uma aliança de extrema direita para “salvar o Ocidente e combater o socialismo”.
Nos dias que se seguiram às eleições americanas, o movimento bolsonarista estava em júbilo, tratando o retorno de Jair Bolsonaro ao poder como uma questão de tempo. O próprio ex-presidente afirmou: “Nada consegue conter a onda conservadora”[iv]. A aposta era que Trump pudesse colocar pressão sobre as autoridades brasileiras para reverter a inelegibilidade de Bolsonaro, condenado por abuso de poder nas eleições pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Com as recentes investigações trazendo novos elementos sobre o possível envolvimento de Bolsonaro numa tentativa de golpe de Estado em 2022, as certezas do bolsonarismo se desfazem. Trump segue sendo a esperança política do ex-presidente, mas quaisquer ameaças vindas da Casa Branca esbarrarão nos desígnios da justiça brasileira.
De todo modo, o novo presidente americano poderá ser um embaraço para o Brasil, mesmo que passe ao largo de sua relação com Jair Bolsonaro. Isso nos leva à segunda pergunta: a política externa de Trump, da maneira como vem sendo anunciada, representará importantes desafios ao governo Lula.
Começando pela parte econômica, Trump já prometeu elevar tarifas sobre produtos importados, de maneira indiscriminada. Os potenciais prejuízos à indústria brasileira são enormes, já que três quartos de nossas exportações para os EUA são de manufaturas. Caso uma renovada guerra comercial com a China reduza a atividade econômica chinesa, nosso agronegócio também poderá ser afetado.
Há outro risco indireto, que diz respeito aos investimentos estrangeiros no Brasil. A política econômica de Trump traz um componente inflacionário que poderá levar os EUA a aumentar os juros sobre o dólar. Isso dificultará a atração de novos recursos e a delicada gestão fiscal por parte do governo brasileiro.
Impactos de natureza política também devem ser considerados. Trump anunciou o senador da Flórida, Marco Rubio, como o próximo Secretário de Estado. Filho de cubanos exilados em Miami, Rubio é particularmente sensível à situação da América Latina e tende a enxergá-la como uma batalha contra o comunismo.
Não é exagero imaginar que a política externa de Trump será antipática a Lula e a outras lideranças progressistas da região. Pior que isso: será abertamente hostil a Nicolás Maduro – podendo, inclusive, retomar a perigosa perspectiva de uma ação militar na Venezuela.
O principal fiador de Trump na região, como se pode esperar, é Javier Milei. Suas recentes decisões de política externa, que envolveram ameaça de boicote à declaração final do G20, mostram que ele está disposto a antagonizar o Brasil em nome de uma relação especial com a Casa Branca. Caso isso aconteça, os esforços brasileiros de integração sul-americana cairão por terra.
A partir do ano que vem, o governo Lula enfrentará um cenário desafiador, tanto interno quanto externo. Domesticamente, o futuro de Bolsonaro e da extrema direita dependerá menos de Trump e mais da altivez de nossas instituições democráticas. Globalmente, caberá ao Brasil usar toda sua capacidade diplomática para seguir defendendo o multilateralismo em tempos difíceis.
Conquistas e limites para a reforma da arquitetura financeira internacional: um breve balanço do G20 no Brasil
Ana Garcia[v]
O Brasil encerrou sua presidência no G20 em novembro de 2024, transferindo a liderança para a África do Sul, dentro do modelo de troika do grupo. Sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil enfrentou desafios significativos em um contexto internacional de incertezas. Como fórum de cooperação econômica e política, o G20, embora informal, é um dos raros espaços multilaterais capazes de impulsionar grandes agendas e políticas globais. Criado para reformar a arquitetura financeira internacional, o grupo ganhou relevância na resposta às crises financeiras das décadas de 1990 e 2000, especialmente a de 2008. Atualmente, sua agenda se expandiu, mas a reforma financeira permanece central, com a meta de viabilizar recursos para combater mudanças climáticas, fome e desigualdades, como proposto pela presidência brasileira.
Entre os avanços alcançados, destacou-se a tributação internacional. A declaração final reafirmou o Quadro-Inclusivo da OCDE sobre Erosão da Base e Transferência de Lucros (BEPS), que inclui a tributação mínima global de 15% para multinacionais. A inovação da presidência brasileira foi a inclusão da proposta de “taxação dos super-ricos”, com compromisso dos países membros em buscar cooperação para garantir a tributação de indivíduos de alto patrimônio líquido, utilizando práticas compartilhadas e mecanismos antievasão.
Além disso, o Brasil defendeu a Convenção-Quadro da ONU sobre cooperação tributária, uma prioridade para países em desenvolvimento, que veem a ONU como um espaço mais inclusivo do que a OCDE. A declaração do G20 destacou a importância de sinergias entre fóruns existentes e o avanço dessa convenção. Especialistas sugerem que a tributação de super-ricos também seja incorporada a este âmbito, representando um ganho para o Brasil e outras economias emergentes. Tais iniciativas também foram incluídas na declaração dos BRICS, sugerindo continuidade no debate durante a presidência brasileira do bloco em 2025.
Outro tema relevante foi a reforma dos Bancos Multilaterais de Desenvolvimento (MDBs). O Brasil elaborou, com base no relatório indiano sobre adequação de capital, um roadmap para tornar os MDBs maiores, melhores e mais eficientes. Endossado na declaração final, o documento propõe recomendações para aumentar a capacidade operacional e financeira dos bancos, com vistas a maximizar o impacto nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). O roadmap sugere maior cooperação com bancos nacionais, governos e o setor privado.
A declaração também abordou a reforma do Fundo Monetário Internacional (FMI), com foco na representação de países em desenvolvimento. Avanços incluem o compromisso de reavaliar as cotas até 2025, buscando um realinhamento mais equitativo, e a revisão das sobretaxas aplicadas a empréstimos, que oneram economias vulneráveis. Além disso, a declaração incentivou a canalização de Direitos Especiais de Saque (SDRs) para fortalecer os MDBs, ampliando sua capacidade de financiamento.
Na questão da dívida externa, a presidência brasileira enfrentou dificuldades em promover soluções imediatas para países vulneráveis. No entanto, um avanço foi a elaboração de um documento sobre “lições aprendidas” com o Common Framework (CF) para reestruturação de dívidas, com análises dos casos da Etiópia, Chade, Gana e Zâmbia. Apesar das críticas à eficácia do CF, o balanço apresentado mostra esforços de revisão e maior transparência, incluindo a necessidade de envolver credores privados e países de renda média. A declaração reafirmou o compromisso do G20 com a transparência e a coordenação na gestão de dívidas, com apoio da Mesa Redonda Global sobre Dívida Soberana.
Embora a presidência brasileira não tenha resolvido todos os desafios, destacou questões cruciais para a governança financeira global, abrindo caminho para a África do Sul continuar os debates em 2025. A inclusão de agendas prioritárias para países em desenvolvimento, como tributação progressiva e reformas nos MDBs e FMI, reforça o papel do G20 como fórum relevante para enfrentar desafios globais
[i] Cientista político, doutor pela USP e parceiro da KAS.
[ii] Professor da FGV EAESP
[iii] https://observador.pt/2024/11/16/presidente-do-vox-diz-haver-vento-de-mudanca-no-ocidente-com-vitoria-de-trump/
[iv] https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/11/aceitem-a-democracia.shtml
[v] Professora Associada de Relações Internacionais, UFRRJ. Pesquisadora Associada, BRICS Policy
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