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Brasil em Foco

Série Brasil em Foco 6/2023

A “tempestade perfeita” para a derrocada de Bolsonaro? / “A pressão do Centrão pelo Ministério da Saúde” / A viagem de Lula para a Europa e a Cúpula CELAC-EU

O número de julho da Série Brasil em Foco está disponível para download gratuito. Esta edição traz três textos sobre a inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro, a pressão exercida pelos partidos do chamado “Centrão” em busca de uma nomeação para o ministério da Saúde e a viagem do presidente Lula para Europa e também sua participação na Cúpula CELAC-CE. A série Brasil em Foco tem por objetivo publicar mensalmente artigos com análises sobre os principais temas em pauta no cenário político, a fim de contribuir no debate democrático.

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A “tempestade perfeita” para a derrocada de Bolsonaro?

Humberto Dantas[1]

“Voto conversa com voto”, mantra político comum que simboliza que políticos conversam melhor entre si. De acordo com esta ideia, a sobrevivência política e o tato eleitoral são garantidos por lógica concentrada no convívio com pares, o que impacta políticas públicas de forma expressiva.

Ganha mais poder neste universo quem pode nomear e distribuir recursos. Weber já escrevia que partido é máquina de nomear gente no Estado e se manter no poder. O brasileiro conhece tal história, e quem perde poder de distribuir recursos e nomear, mantém alguma força quando mostra potencial de conquistar votos e apoios.

Assim, parte do poder político está em nomear, distribuir e persuadir. Pense agora no símbolo maior disso no Brasil: o Presidente. O que seria capaz de enfraquecer esta figura? Bolsonaro se notabilizou por queimar aliados, ofertar apoio a poucos e criminalizar a distribuição de recursos – que praticou. Em décadas como parlamentar, se cercou dos seus e ganhou a Presidência no contrapé do apreço do povo pela política. Desde então, espantou muitos. O noticiário não cansa de reportá-lo como isolado e capaz de atrair mais pela intolerância à esquerda do que por qualidades.

Em 2022, a inédita derrota na tentativa de reeleição tirou o presidente de circulação em pleno mandato. Alegando depressão, o líder se isolou, inclusive, do processo decisório. Faltando poucos dias para o fim do governo, se autoexilou. Em maio de 2023, segundo levantamento do PL divulgado pela CNN, Bolsonaro acumulava mais de 600 processos. É comum que ex-mandatários carreguem acusações, mas o volume assusta. No TSE são 16 causas, e na primeira já foi condenado à perda dos direitos políticos por oito anos em virtude do uso político da máquina federal para disseminar tese contra o sistema eleitoral junto a embaixadas.

Por enquanto, a condenação o tira do pleito de 2026, e longe do Planalto faltam recursos para distribuir. O que resta? O ex-presidente ainda tem capacidade de arrebanhar votos. Mas a qual preço e intensidade? Pesquisa IPEC divulgada em julho ajuda na argumentação. O ICS – Índice de Confiança Social mede anualmente, desde 2009, o grau de confiabilidade dos brasileiros em 20 instituições, sendo seis delas representativas da política – Sistema Eleitoral, Partidos, Congresso, Presidente, Governos Federal e Municipal. A média da confiança nelas esteve entre 45% e 50% de 2009 a 2012. A partir de 2013 ficou abaixo dos 40%, e entre 2015 e 2018, aquém dos 30%. Foi nesse cenário que Bolsonaro se elegeu. E, em parte, por causa dele, o indicador voltou a superar 40% em 2019, atingindo 47% em 2023. Sem poder para distribuir e desabilitado para competir, a sobrevivência do ex-presidente está condicionada a duas coisas: à capacidade extraordinária de articular partidariamente, que ele não tem; e ao poder de arrebanhar votos. Hoje Bolsonaro é refém e salvação conjuntural no PL. E tal acordo de sobrevivência pode se enfraquecer sob três frentes: 1) se o povo ressignificar minimamente a política, o presidente eleito em 2018 no contrapé da valorização democrática perde força. 2) se Lula fizer bom mandato, atenuando intensidades e arrefecendo desconfianças, Bolsonaro perde sentido. 3) o ex-presidente terá que ser o que nunca foi: cabo eleitoral. Em 2024, como protagonista, precisa eleger cerca de mil prefeitos, algo difícil.

Tudo isso considerando que ele não tem mais parte do poder e está inelegível. Com um adicional: a concorrência interna de quem deseja ocupar seu lugar. Arthur Lira disse: o legado de Bolsonaro foi desavergonhar a direita conservadora. E a partir disso, “aliados” reconhecem que outras figuras são mais palatáveis. O cenário aqui pintado pode configurar a “tempestade perfeita” à derrocada, ao menos momentânea, de Bolsonaro.

 

 

“A pressão do Centrão pelo Ministério da Saúde”

Fernando Guarnieri[2]

Nenhum presidente brasileiro do período pós-1988 pertenceu a um partido com maioria no Congresso. Todos tiveram que formar coalizões de governo, isto é, tiveram que ceder postos ministeriais ou de alta direção para partidos aliados. Ao incorporar estes aliados, cria-se um “governo da coalizão”, na feliz designação proposta pela cientista política Andréa Freitas, onde todos os partidos influem e sofrem a sorte do governo.

Coalizões são comuns a todos os sistemas políticos multipartidários, que são a maior parte dos sistemas que vigoram hoje no mundo. De uma lista de 130 democracias 61 possuíam um número efetivo de partidos no parlamento maior que três e 81 maior do que 2,5 (Gallagher e Mitchell, 2008). Em quase todas, cargos foram distribuídos para partidos em troca de apoio.

No atual governo, do presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), 16 dos 37 ministérios foram destinados a oito partidos aliados que vão desde o PCdoB até o União Brasil. Estes ministérios, no entanto, não são todos iguais. Conforme Batista, Zucco e Power (2019) os dez ministérios mais importantes seriam, em ordem decrescente de importância, Cidades, Planejamento, Fazenda, Casa Civil, Educação, Minas e Energia, Saúde, Ciência e Tecnologia, Agricultura e Trabalho. Metade destes ministérios estão nas mãos de partidos aliados. Quatro estão nas mãos do PT e apenas um é comandado por quadro técnico: o Ministério da Saúde.

Natural, portanto, em um momento de necessidade de se ampliar o apoio no Congresso, que a cobiça de novos aliados recaia sobre este ministério. Republicanos e PP, dois partidos do chamado “centrão”, foram vitais para que o Governo aprovasse suas principais agendas de 2023, mas ainda não dispõe de pastas. Almejam o Ministério da Saúde, pois não só trata de um tema que sempre está entre as maiores preocupações do eleitorado, como também possui o terceiro maior orçamento e grande capilaridade territorial. Esses fatores têm evidente importância nas estratégias políticas dos partidos, ainda mais às vésperas das eleições municipais de 2024.

Desde o governo de José Sarney até o atual, isto é, em 38 anos tivemos 28 ministros da saúde. Cada ministro ficou no posto uma média de um ano e quatro meses. O ministro que permaneceu por mais tempo foi o ex-Senador José Serra que ficou no cargo por quatro anos, entre 1998 e 2002, saindo para disputar as eleições para Presidência da República. O perfil destes ministros é misto, envolvendo políticos e técnicos. Isso tudo torna difícil prever se a pressão dos partidos do “centrão” será bem-sucedida.

Há, no entanto, alguns padrões que se repetiram por todos os governos petistas da 6ª República e que parecem dar algum alento para a atual ministra Nísia Trindade. Os ministros destes governos sempre foram ligados ao PT, com exceção da nomeação de Marcelo Castro, do MDB, no final do governo Dilma Rousseff, nomeação esta que deve ser compreendida à luz do processo de impedimento da presidente. Os ministros nomeados no início dos mandatos presidenciais petistas duraram mais do que seus substitutos e só saíram para se lançar candidatos nas eleições para governador, com exceção de José Gomes Temporão, que permaneceu durante quase todo segundo mandato do presidente Lula.

Governos de coalizão envolvem a cessão de cargos em troca de apoio parlamentar, por meio de um processo de barganha onde postos ministeriais são ranqueados e cobiçados conforme sua importância. PP e Republicanos, partidos de “centrão” ajudaram o governo e agora cobram sua fatura. Estão de olho em uma das joias da coroa, o Ministério da Saúde. A se fiar na história, este é um preço muito alto que o PT não estaria disposto a pagar.

 

Referências

GALLAGHER, Michael; MITCHELL, Paul (Ed.). The politics of electoral systems. OUP Oxford, 2008.

ZUCCO JR, Cesar; BATISTA, Mariana; POWER, Timothy J. Measuring portfolio salience using the Bradley–Terry model: An illustration with data from Brazil. Research & Politics, v. 6, n. 1, p. 2053168019832089, 2019.

FREITAS A. O presidencialismo da coalizão. Fundação Konrad Adenauer; 2016.

 

 

A viagem de Lula para a Europa e a Cúpula CELAC-UE

Leandro Gavião [3]

"Um novo começo para uma velha amizade". Foi dessa forma que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, definiu o teor da III Cúpula CELAC-UE, ocorrida nos dias 17 e 18 de julho, em Bruxelas.

Criada em 2010, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos reúne 33 Estados, objetivando operar como um canal de concertação política e ferramenta de diálogo da região com outros blocos e países. Embora tenha sido eclipsada por organizações mais funcionais, como o Mercosul, a CELAC ganhou destaque na imprensa internacional durante o mês de julho.

O encontro, que não acontecia desde 2015, foi impulsionado pelos desafios da conjuntura. Segundo von der Leyen, América Latina, Caribe e Europa precisam "uns dos outros mais do que nunca". De fato, essa afirmação se confirma, visto que os últimos anos foram marcados pelos impactos socioeconômicos da pandemia da Covid-19 e da guerra na Ucrânia, com desdobramentos negativos em diversas frentes, destacando-se a desorganização das cadeias de suprimentos, a crise no fornecimento de energia e o aumento da inflação e das taxas de juros.

Como consequência da instabilidade global, o aprofundamento do intercâmbio comercial com a América Latina tem se confirmado como um tema urgente na agenda europeia. Nesse aspecto, a região pode operar como uma fonte diversificada de produtos primários, que vai do triângulo do lítio (Bolívia, Chile e Argentina) até a produção agropecuária brasileira — fundamental para a segurança alimentar mundial. Ademais, a aproximação birregional alinha-se ao Global Gateway, estratégia de investimentos da UE que abrange projetos sustentáveis de infraestrutura, saúde e tecnologia, da qual a América Latina receberá 45 bilhões de euros nos próximos quatro anos.

Da perspectiva do Brasil, o encontro impulsionou nova rodada na construção de consensos com a União Europeia, seu segundo maior parceiro comercial. Além disso, reforçou a capacidade de liderança ancorada em uma diplomacia presidencial proativa. Segundo Lula, o Brasil recuperou "o prazer de fazer política internacional" e "seu papel de protagonista", enfatizando, para além dos interesses comerciais recíprocos, a existência de conformidades no campo dos valores entre as regiões, destacando-se a defesa da democracia e dos direitos humanos.

O discurso também abrangeu temas laterais que reforçam bandeiras históricas do Brasil, como a reforma do Conselho de Segurança da ONU e, na dimensão econômica, a crítica à divisão internacional do trabalho, que condena a América Latina ao papel de exportadora de commodities. Nesse sentido, seria importante defender a (re)industrialização latino-americana a partir de investimentos estrangeiros e de transferência de tecnologia, evitando-se que a aproximação CELAC-UE agrave a orientação primária da economia.

Outro objetivo de Lula foi tentar convencer os europeus de que o Brasil é, agora, um país comprometido com a transição energética e com o desenvolvimento sustentável, buscando se consolidar como uma economia verde de baixo carbono. Essa mudança de perfil do país ajudaria, inclusive, a derrubar alguns entraves ao acordo entre o Mercosul e a União Europeia, definido como prioridade pelo governo brasileiro, mas cujas negociações se arrastam há quase três décadas.

Diante do afã europeu em se aproximar da América Latina, abre-se ao Mercosul a possibilidade de direcionar os rumos do maior acordo comercial de sua história, tornando-o mais vantajoso no tocante a temas como a defesa das compras governamentais e o combate aos subsídios agrícolas europeus. Contudo, seria importante aproveitar o clima favorável e concluir as negociações até junho de 2024, quando ocorrerão novas eleições para o Parlamento Europeu. Trata-se, assim, de uma oportunidade de traçar um destino diferente da ALCA, engavetada em 2005 após anos de impasses entre as partes contratantes.

 

 

[1] Cientista político, doutor pela USP e parceiro da KAS.

[2] Doutor em Ciência Política pela USP, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ).

[3] Possui pós-doutorado em História (UFRJ), é professor de Relações Internacionais na Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e escreve para o Le Monde Diplomatique Brasil desde 2015.

 

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