O silêncio das convergências em meio às extremas divergências
Humberto Dantas[i]
Quando foi reeleito presidente da Câmara dos Deputados em fevereiro de 2023, Arthur Lira (PP-AL) somou 464 votos, ou mais de 90% dos 513 membros da Casa. De acordo com o portal do parlamento, foi “a maior votação absoluta de um candidato à Presidência da Câmara, considerados os registros dos últimos 50 anos”. Em 2025, diante da construção de candidatura para sucedê-lo, Lira afirmou que gostaria de exercer o “direito de fazer seu sucessor”, algo que não reflete o fato de que sua primeira vitória, em 2021, foi contra o colega apoiado pelo então presidente da Câmara.
Lira apoiou Hugo Motta (REP-PB), eleito em fevereiro com 444 votos, ou mais de 85% dos pares. Em meio ao ápice das divergências políticas que assolam nosso país, recordes de convergências para a escolha de quem controla a Mesa Diretora da Câmara. O que isso espelha?
Em tese, trata-se de Política. Acordos são selados e espelham o possível, a despeito dos extremismos que separam os antagônicos PL e PT – lembrando que faz 20 anos eles governavam juntos o Brasil. Assim, se ambos não parecem capazes de se organizarem em torno de candidaturas exitosas no Congresso, seus protagonismos são terceirizados para legendas que se organizam em torno de soluções. Tirando o fato de que o Progressistas de Lira e o Republicanos de Motta eram os únicos partidos a apoiarem o PL de Bolsonaro em 2022, são estas as legendas que atraíram amplo leque que inclui PT e PL. Em torno do quê?
Eis o ponto. Nos últimos anos, a Câmara dos Deputados ganhou protagonismo expressivo. Incluamos o Senado e falaremos do Congresso Nacional, onde Davi Alcolumbre voltou à Presidência com o apoio de mais de 90% dos 81 senadores. Dois elementos parecem explicar tais intensidades. O primeiro está associado às emendas impositivas ao orçamento, instrumento que colocou obrigatoriamente nas mãos dos legisladores, fatias importantes de dinheiro distribuídas às suas bases sem que isso envolva negociações tradicionais com o Executivo. O segundo foi conjuntural, e parece associado às mudanças ocorridas em lógicas regimentais durante a pandemia. A pauta, a partir das emergências vividas, se concentrou nas mãos das presidências das casas, que aceleraram o processo legislativo e resultaram em vitórias do Executivo que não ofertaram grandes margens à oposição, ressalva feita a crescentes apelos ao STF, que aumentou seu protagonismo político.
Todo este descritivo indica uma capacidade de o Legislativo se organizar de forma a promover escolhas que, mesmo contando com o apoio do Executivo, indicaram força extraordinária do parlamento. O principal resultado é o controle de recursos que convertem a improvável convergência ideológica de um país cindido, em acordos que oferecem aos legisladores uma força individual que impacta suas carreiras, simbolizada por reeleição e controles regionais em pleitos municipais.
Aqui está a essência desta análise: se a escolha dos últimos presidentes da Câmara foi cercada por mais de 85% de apoio e alinhou partidos divergentes, ofertando ao parlamento força política descomunal, capaz de impulsionar análises que nos levariam à noção, contestável, de que vivemos um parlamentarismo ou um semipresidencialismo, qual a agenda desse Legislativo? Se o parlamento é dominante, como converter a unanimidade eleitoral interna em algo capaz de sinalizar o sentido de atuação do todo chamado Câmara dos Deputados? O Legislativo brasileiro parece ter encontrado o bônus de comandar recursos, sem o ônus de apresentar uma agenda política que o legitime institucionalmente aos olhos da sociedade. Se o todo é maior que a soma das partes, parece urgente compreender isso à luz das partes que, controlando suas fatias de recursos, parecem se isentar da ideia de todo...
A eleição na Alemanha: Entre a tradição, metamorfoses e insegurança
Silvana Krause[ii]
Quando iniciei a escrever este artigo o resultado da eleição alemã não era conhecido. No entanto, o contexto da campanha eleitoral já mostrava um país com suas placas tectônicas em movimento. É cedo para prever cenários, mas é possível observar que o país passa por mudanças. A ameaça à democracia restringe-se a um partido ou é uma maré que pode ser capitalizada por outros atores?
No século XX o país experienciou regimes políticos extremos, entrou no século XXI desfrutando com otimismo vários consensos. A percepção da opinião pública era a de que a segurança e a paz eram conquistas imbatíveis, propiciadas pelo arcabouço político-jurídico, geralmente sintetizado pelo termo “Estado Democrático de Direito”. Já o contexto atual sinaliza que tal cenário está ameaçado. A velocidade das mudanças tem exigido muito do país. As mudanças não são apenas internas, pois o contexto internacional é também completamente distinto do que orientava o país após a Segunda Guerra. A aposta na parceria tradicional na aliança transatlântica não é mais sólida. Há um paradoxo a ser enfrentado. A aliança que solidificava este sentimento é justamente aquela que agora fragiliza e abandona o que estava consolidado na democracia construída. As posições do novo governo americano em relação à guerra na Ucrânia, o envolvimento de Elon Musk em atividades de campanha eleitoral com a candidata da extrema direita Alice Weidel (AfD) e a afirmação do vice-presidente J.D. Vance contra o “cordão sanitário” alemão, expõem um novo cenário.
O resultado da eleição de fevereiro de 2025, antecipada pelo fim da coalizão social-democrata de Scholz (SPD), consolidou o que as pesquisas de intenção de voto indicavam, os temas economia e imigração foram as principais questões apontadas pelo eleitorado e dominaram o debate. No entanto, o debate ficou hegemonizado pela polarização do contra ou a favor, dada a construção de um “bode expiatório” bem elaborado pela extrema direita. Houve dificuldade de os partidos tradicionais saírem dessa “arapuca” e convencer boa parte do eleitorado de que a política migratória é complexa, e que não se resume ao seu mero endurecimento ou fechamento de fronteiras. Especialistas já demonstraram que não haveria recursos ou pessoal suficientes para uma operação destas. Simplificar foi a estratégia extremista e a resposta pronta seduziu.
A eleição cristalizou uma Alemanha que não é mais a mesma, mas não está apática. Metamorfoses foram observadas. A participação eleitoral, em um país que não tem o voto obrigatório foi alta (82,5%). Há tempos este percentual não era superado, o último foi na eleição de 1987 (84,3%). A principal beneficiada com este aumento da participação eleitoral foi a candidata da extrema direita, especialmente na região da antiga Alemanha oriental. O eleitorado está infiel, mudando suas opções rapidamente. Se, por um lado, os candidatos dos partidos tradicionais (SPD, CDU e VERDES) apresentaram as piores avaliações, por outro, são a CDU e o SPD as únicas legendas que têm uma avaliação positiva, mesmo que baixa. A AfD, apesar do seu sucesso eleitoral, apresenta a maior rejeição partidária. Por sua vez, o Die LINKE (A Esquerda), fruto de uma antiga cisão na SPD e união com lideranças da antiga Alemanha oriental (2007), cresceu, obtendo 8,77% dos votos e tem aumentado significativamente seu número de filiados.
O envelhecimento do eleitorado alemão e a desafiadora Alemanha unificada, após euforia e expectativas das primeiras décadas, foram mobilizadores da tendência centrífuga e fragmentadora na eleição. A força da votação da extrema direita está na região leste do país e potencializada pelos mais jovens. O fermento do Die LINKE também são os jovens e a legenda apresentou uma candidata jovem, Heidi Reichinnek. O que revela a lacuna de memória das novas gerações das experiências autoritárias vivenciadas pelas gerações anteriores, o que favorece a repetição do “canto da sereia” das soluções simplificadoras.
A eleição sinalizou o esgotamento da tradição centrípeta assegurada desde a eleição de 1949. Os principais partidos (CDU/CSU, SPD e VERDES) que garantiram a tradição da negociação ao centro, estão desafiados. A extrema direita (AfD) ficou em segundo lugar com 20,80% da votação, a social-democracia (SPD) teve a sua pior votação desde o século XIX. A CDU/CSU, com a votação de 28,52%, prometeu respeitar o ‘cordão sanitário” mantendo a responsabilidade de evitar a participação da extrema direita no governo. As opções de coalizão estão reduzidas diante da crescente fragmentação partidária na Alemanha. A dificuldade em criar-se coalizões estáveis é um fenômeno recente e recorrente em vários países. O que fazer com um problema trazido pelas próprias eleições, se elas deveriam trazer a solução? O “cordão sanitário” revela a desconfiança dos outros atores políticos quanto à faceta de um ator político no cenário partidário. Até quando a democracia alemã resiste aberta a seus inimigos?
O pragmatismo reprimido
Philipp Gerhard[iii]
Os partidos da União, CDU e CSU, conseguiram se distinguir claramente de seus concorrentes e ganhar as eleições antecipadas para o Bundestag, o parlamento federal alemão, mas seu sucesso foi modesto, com apenas 28,5% dos votos. Os três partidos do governo anterior, por outro lado, foram claramente punidos pelos eleitores.
Embora o projeto esquerdista dos últimos anos tenha fracassado de forma espetacular devido às perdas maciças sofridas pelos três partidos do “semáforo”, os social-democratas (SPD, vermelho), os liberais (FDP, amarelo) e os Verdes, a voz conservadora da razão não conseguiu se beneficiar suficientemente desse fato. A Alemanha e a Europa estão sofrendo as consequências da falta de direção estratégica e do excesso de ideologia, que nos últimos anos poderiam ter preparado o continente para o que agora está ameaçando sua prosperidade e segurança. Somente agora, após o choque de realidade geopolítica da invasão russa na Ucrânia e a reeleição de Donald Trump, é que a extensão das falhas do passado está se tornando aparente. Por fim, a CDU governou o país por 16 anos.
Em retrospecto, decisões como a saída apressada da energia nuclear, a abolição do serviço militar obrigatório e a política de asilo incondicional não apenas se mostraram controversas, mas também corroeram a identidade conservadora do partido. Embora o chanceler federal (chefe de governo) designado, Friedrich Merz, tenha recentemente se distanciado claramente de sua antecessora Angela Merkel e retornado o partido ao seu perfil original de centro-direita, a CDU ainda tem um fardo a carregar.
Como provável próximo chanceler, Friedrich Merz enfrentará a gigantesca tarefa de iniciar uma mudança de rumo que não se furte a reformas de longo alcance. É preciso acabar com a recessão econômica, limitar a burocracia excessiva, corrigir a miséria da política educacional, fortalecer militarmente o país e controlar o abuso do status de asilo e a migração ilegal. E tudo isso em tempos de orçamentos apertados e de uma constelação multipolar cada vez mais ameaçadora.
Entretanto, como mostra o resultado da eleição federal, muitos alemães ainda não estão totalmente conscientes da natureza dramática da situação internacional e nacional. Sintomático de como o país quer manter ocultos seus problemas, o partido comunista A Esquerda, com um programa eleitoral que nega grotescamente a realidade, obteve ganhos significativos. Os eleitores mais jovens, em particular, fortaleceram as franjas do espectro político. A Esquerda e a Alternativa para a Alemanha (AfD), populista de direita, receberam o maior apoio entre os jovens de 18 a 25 anos. Embora tenha quase dobrado seu resultado em relação às últimas eleições, a AfD ficou aquém das expectativas. A erosão da segurança interna e vários ataques de solicitantes de asilo nas semanas que antecederam a eleição não deram ao AfD um impulso adicional. Até mesmo o apoio ostensivo de Elon Musk e a campanha do vice-presidente dos EUA, J. D. Vance, em favor do partido populista de direita não o elevaram acima da marca de 20%. Isso significa que o recém-eleito parlamento alemão agora será composto por cinco grupos parlamentares: A Esquerda, os Verdes, o SPD, a CDU/CSU e a AfD.
Para governar, a CDU/CSU precisa de uma maioria absoluta e, portanto, de um parceiro de coalizão. Como o AfD já havia sido descartado como parceiro de coalizão antes da eleição, a CDU/CSU só teria o SPD como parceiro. Os social-democratas já eram os parceiros de coalizão preferidos durante a era Merkel e exerceram influência considerável sobre as políticas do governo liderado pela CDU. Os partidos da futura coalizão devem chegar a um consenso, que será formalizado em um acordo de coalizão. Embora a CDU tenha se aberto para a esquerda sob o comando de Merkel e feito concessões ao SPD, as negociações da coalizão podem ser mais difíceis desta vez. Ainda não está claro qual corrente do SPD levará a melhor. Os social-democratas se moderarão e se posicionarão no centro-esquerda ou a ala esquerda continuará a se inclinar para a esquerda, apesar da grande perda de votos.
[i] Cientista político, doutor pela USP e parceiro da KAS.
[ii] Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Politica/UFRGS. Integrante do Projeto Programa Brasil-Alemanha PROBAl/CAPES-DAAD: "A extrema direita em perspectiva comparada Brasil e Alemanha".
[iii] Representante adjunto da Fundação Konrad Adenauer no Brasil.