A política precisa mudar, mas isso é mais amplo – um exemplo
Humberto Dantas[1]
Faz algumas semanas ocorreram os primeiros debates entre as principais candidaturas às Prefeituras das cidades mais populosas do Brasil. Uma emissora de TV, em especial, se orgulha de promover, faz décadas, a rodada inicial desses encontros. O espetáculo merece atenção.
Há anos o mundo discute o que chamamos de crise de legitimidade das democracias, sobretudo aquelas de natureza mais representativa. A sensação, de parte expressiva dos eleitores, é que a política lhe é distante e os representantes não são capazes de lhes representar. Ao mesmo tempo, emerge com força a percepção de que cada vez mais os políticos conseguem falar diretamente com seus eleitores em linguagem própria, universo específico e ritmo intenso por meio, sobretudo, das redes sociais. As campanhas, assim, fugiriam dos partidos e dos meios mais tradicionais de pedirmos votos, se concentrando em narrativas particulares capazes de mobilizarem seguidores virtualmente. Isso reforça a ideia de “políticos de estimação” e provavelmente afasta parcelas dos eleitores das diversidades essenciais à democracia.
Os debates recentes mostraram isso: é menos sobre a atração em si, transmitida ao vivo em rádio, internet e TV, e mais sobre recortes capazes, de uma vez editados, promoverem sensações distorcidas para usos específicos no universo virtual a partir das redes sociais das principais candidaturas. Vivemos nesse mundo faz anos, e não sabemos ao certo, ainda, para onde isso vai nos levar.
O que de fato sobra nessa realidade é: parte dos debates viraram notícias pelo caráter surreal de algumas participações. Numa capital do nordeste, o prefeito desferiu uma cabeçada em seu adversário quando debatiam, sabe-se lá porque, a centímetros de distância um do outro. Questionado sobre o gesto, a justificativa foi que recebera uma cuspida, talvez o escape de perdigotos, que câmera alguma mostrou. Na cidade mais populosa do sudeste, uma candidatura se destacou por ameaças violentas, pelo chamamento à briga e pelos palavrões em tom inquisitorial. Onde se chega com isso? Os críticos se apressaram em dizer que perdemos o limite do convívio democrático, mas os recortes para uso nas redes sociais, sobretudo aqueles protagonizados em São Paulo, renderam os principais engajamentos. Até quando?
A sociedade vive se queixando da política, dos políticos e do funcionamento da democracia. Nas últimas décadas, diferentes campos da filosofia têm observado que crises democráticas podem ser arrefecidas a partir da criação de novos instrumentos de Democracia, mas o quanto o esforço para o aprimoramento da política representativa, por exemplo, vai além de uma melhora no ambiente dos próprios políticos, das campanhas e dos organismos de representação? A emissora que promoveu todo esse show não reconheceu a falência do que assistimos, e os formatos dos debates, a despeito do canal que os promovem, tendo em vista que as demais atrações dessa natureza serão iguais, não parecem perceber que parte da responsabilidade por isso tudo também está associada ao espetáculo e ao jornalismo. A audiência dos debates foi grande, e isso importa. Para quem? Para o negócio TV numa sociedade que trata a política como bem deseja? No longo prazo precisaremos discutir o impacto da repactuação da democracia em nossa realidade a partir da educação. No curto prazo, a democracia precisa se reinventar não apenas na postura de seus representantes, mas também das instituições que comunicam a política.
Voltemos ao começo do texto: “faz algumas semanas...”. A verdade é que faz anos que os espetáculos se repetem. Alguns dias atrás, no portal da Revista Problemas Brasileiros, toquei nesse mesmo assunto da forma como tratamos a política pelo jornalismo sob uma outra abordagem igualmente complexa. Junte esse texto àquele. Debatamos o problema de forma ampla.
O combate às fake news nas Eleições 2024
Elisa Correa[2]
A disseminação de notícias falsas no ecossistema digital resulta em uma desordem informacional[3] que apresenta sérios riscos às democracias. No Brasil, a desinformação encontrou terra fértil em parte da população cujo comportamento ultraconservador e acrítico pode ser facilmente manipulado pelo tecnopopulismo[4].
Ao analisar o contexto político dos processos eleitorais recentes, constata-se que o cenário das eleições presidenciais em 2018 era apoiado pela retomada do poder por lideranças políticas neoliberais, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, após treze anos de governo de esquerda. Essa interrupção favoreceu a eleição de Bolsonaro como representante do eleitor que surge com o neoconservadorismo[5], para quem governos de esquerda representam o perigo de submeter o país a uma ditadura comunista e à destruição da moral e valores religiosos. Essa vilanização[6], sedimentada em fake news, teve fator preponderante no resultado das urnas.
Durante o governo Bolsonaro, o combate às fake news foi sistematicamente reprimido pelo aparelhamento do Estado, permitindo o fluxo de notícias falsas. O veto do então presidente ao projeto de lei que previa punições a quem divulgasse notícias falsas, mantido pelo Congresso Nacional em 2021 e, infelizmente, também em 2024; assim como a criação e manutenção do Gabinete do Ódio[7] são exemplos incontestáveis.
Apesar disso, a esquerda volta ao poder em 2022 e em seguida o Brasil enfrentaria um violento ataque à Constituição Federal: os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. A relação com as fake news são instrínsecas: as crenças infundadas na validade das urnas eletrônicas foram o berço de onde partiram os ataques. Notícias falsas de manipulação dos resultados das urnas foram espalhadas abundantemente em plataformas e mídias sociais digitais.
Merece destaque o papel do Supremo Tribunal Federal (STF) atuando em favor da democracia: seja no desmantelamento da Lava Jato, permitindo a volta de Lula ao cenário eleitoral, seja punindo envolvidos no 8 de janeiro ou, mais recentemente, suspendendo a plataforma X por violar leis brasileiras, dentre elas, o Marco Civil da Internet.
Chegamos em 2024 com eleições municipais e fake news ainda circulando (talvez menos desta vez sem o X), legislação não estabelecida, anticomunismo em pauta e um eleitorado carente de pensamento crítico[8], apesar de mais consciente dos efeitos nocivos das notícias falsas[9]. Destes, o maior desafio parece residir no comportamento do eleitor e, talvez, o letramento político proposto por Cosson em 2011[10] seja uma estratégia eficaz a médio e longo prazo.
Letramento político é o processo de apropriação de conhecimentos (direitos humanos, instituições políticas, democracia), práticas (exame de temas controversos, participação decisória, diálogo) e valores (equidade, liberdade) para a manutenção e o aprimoramento da democracia. Os temas propostos, articulados pelo ensino fundamental, médio e superior, talvez possam ajudar na formação de cidadãos mais críticos, com maior empatia e respeito ao meio ambiente.
Para 2024, permanece o STF em alerta, agências de checagem de fatos ativas e a esperança de eleições mais limpas com as conquistas dessa história recente. Porém, a certeza maior é a de que temos muito trabalho duro pela frente nessa batalha que está longe de ser vencida.
[1] Cientista político, doutor pela USP e parceiro da KAS.
[2] Doutora em Sociologia Política pela UFSC.
[3] DESORDEM INFORMACIONAL NO ECOSSISTEMA DIGITAL DAS ELEIÇÕES BRASILEIRAS DE 2018. https://ap1.sib.uc.pt/handle/10316.2/47355
[4]Tecnopopulismo: populismo somado aos algoritmos https://revistaejef.tjmg.jus.br/index.php/revista-ejef/article/view/19
[5] FAKE NEWS E PÓS-VERDADE NA CONSTRUÇÃO DO NEOCONSERVADORISMO NO BRASIL PÓS 2013 E OS EFEITOS NAS ELEIÇÕES DE 2018 https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/letronica/article/view/35546
[6] https://ojs.labcom-ifp.ubi.pt/ec/article/view/1436
[7] Relatório produzido pelo juiz Aírton da Veiga, que detalha a ação do gabinete do ódio, como fruto de investigação do STF sobre ataques à democracia nas eleições presidenciais em 2022.
[8] https://jornal.usp.br/radio-usp/relatorio-da-ocde-mostra-que-brasileiros-sao-os-piores-em-identificar-noticias-falsas/
[9] DataSenado: 80% dos brasileiros temem impacto das fake news nas eleições. https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2024/08/datasenado-80-dos-brasileiros-temem-impacto-de-fake-news-nas-eleicoes
[10] COSSON, Rildo. LETRAMENTO POLÍTICO: trilhas abertas em um campo minado. https://www.academia.edu/download/67949975/76.pdf