O caso “X” é round de uma luta maior
Humberto Dantas[i]
A suspensão da rede social “X” no Brasil expõe problemas que transcendem conflitos pessoais entre Elon Musk e Alexandre de Moraes, como algumas análises afeitas à espetacularização enfatizam. Também ultrapassa a ideia de processo jurídico comum envolvendo Estado e empresa. O caso representa mais um conflito sequestrado pela polarização radical em torno de interpretações sobre Democracia, Estado, liberdade de expressão e individualidade.
E assim, somado ao poder de mobilização que o “problema da vez” causa, parcelas da sociedade voltam a se ocupar daquilo que amam ou odeiam. O caso, inclusive, resultou em novo embate entre os presidentes mais atuais do Brasil, Lula e Bolsonaro, personagens políticos dependentes de tais conflitos.
O que se assiste em torno das medidas que envolvem STF e “X” está associado, de um lado, à noção quase ilimitada de “Liberdade de Expressão” convenientemente encantadora, sobretudo à direita, quando tal conceito a beneficia e agrada, ou lhe mune e inflama diante do sentimento de “censura” versus a ideia de apego conveniente a decisões questionáveis do STF que parecem valorizar a soberania do Estado como protetor de uma série de direitos pactuados, que à esquerda ganha sentido apaixonante quando parece limitar “o capital”.
De um lado, vemos a crença nas individualidades de parcelas da sociedade afeitas ao direito ilimitado e irrestrito de discursos, desde que isso não afronte o “moral e divinamente” inquestionável. A bipolaridade reside no fato de que a liberdade “absoluta” de expressão é conveniente quando agrada, e seus limites são “dogmas” que se fortalecem e radicalizam em crenças. O resto é Liberdade, e praticamente um sinônimo de Estado Democrático.
Tal interpretação de Democracia, fortemente concentrada na liberdade de expressão, é culturalmente basilar nos EUA. Elon Musk é naturalizado estadunidense, e crê no que prega, lucrando com o que tem em mãos: uma rede social que coloca limites mínimos à expressão, desafiando soberanias e permitindo a disseminação de mentiras. Musk, assim, chamou o governo australiano de fascista, comprou conflitos na União Europeia, desafiou o presidente Biden e atacou Alexandre de Moraes.
Em lado supostamente oposto está outra percepção de Estado, igualmente passível de ser visto com democrático. Aqui o limite à expressão não é apenas moral, mas orientado por leis que arrefecem individualidades e são coletivamente pactuadas e interpretadas por instituições do Estado. A realidade, assim, aqui é mediada pelo próprio humano, investido do poder institucional da justiça sob viés constitucional. O desafio está em crer na capacidade neutra e equilibrada dessa justiça.
Assim, se por um lado a “ilimitada” liberdade de expressão nos desafiaria a exigir bom senso individualizado com base em “morais divinas”, de outro, a lei coletiva e pactuada exigiria equilíbrio e respeito institucional no instante de ser interpretada e aplicada com base em ações de atores humanos e suas leituras limitantes do que a coletividade produziu. Aqui demandamos equilíbrio, empatia, respeito e moderação, enquanto o debate político está no conflito.
Ou seja: parte da sociedade entrega radicalmente limites de expressão a interpretações dogmáticas e individualizadas, assistindo ao trabalho de uma questionável justiça como inimigo, enquanto outra parte passa a crer exacerbadamente num Judiciário ativo que pode exagerar quando produz resultados que ocasionalmente agradam agendas mais progressistas. O embate entre STF e “X” é apenas round de luta em torno de interpretações limitadas da realidade. Em resumo: liberdade de expressão tem limites, e eles são legais, assim como a justiça também tem limites, e eles são legais. Mas quem se importa com isso diante de espetáculos que atraem audiência com base em ameaças a valores? Musk e Moraes, STF e “X” não é sobre o Estado brasileiro e um empresário global de comunicação. É sobre como olhamos Estado, Democracia, liberdade de expressão e individualidades.
Sem saída? Navegando na Insegurança Global - A Conferência de Segurança Internacional do Forte em 2024
Aline Soares[ii]
Para fomentar o diálogo entre os países, gerenciar crises e facilitar negociações em conflitos, inúmeras organizações trabalham na temática da promoção da paz e da segurança internacional. Destas, algumas instituições realizam eventos internacionais de grande porte com a presença de autoridades governamentais de alto nível, especialistas e membros das forças armadas para tratar do tema defesa e segurança. As conferências voltadas para esta temática têm ganhado papel de destaque na cooperação internacional, pois facilitam o encontro e a troca de visões entre membros da sociedade civil e de governos de diversas origens, abrindo espaço para o debate dos temas fundamentais no âmbito de defesa e segurança. Tais eventos são verdadeiras arenas de discussão, democráticas e essenciais nos dias de hoje, visto que favorecem o entendimento sobre os acontecimentos globais, fomentam e amparam a negociação de acordos internacionais, dão ênfase à cooperação na área de defesa e segurança e possibilitam maiores chance de apoio para a atuação conjunta de organismos multilaterais, países e organizações da sociedade civil.
Na América Latina, a Conferência de Segurança Internacional do Forte foi idealizada pela Fundação Konrad Adenauer no Brasil e especialistas brasileiros, que pretendiam facilitar o diálogo entre brasileiros e europeus nesta temática. Em seu início, o evento era realizado em uma área militar do Rio de Janeiro, o Forte de Copacabana, quando foi batizado e recebeu o nome de Forte. Ao longo dos anos, a atividade atraiu mais interessados na temática e o evento ganhou prestígio e novos parceiros. Hoje a conferência é realizada pela Fundação Konrad Adenauer no Brasil, em parceria com o Centro Brasileiro de Relações Internacionais e a Delegação da União Europeia no Brasil.
Atualmente em sua 21ª edição, a Conferência de Segurança Internacional do Forte se tornou o maior evento de segurança internacional da América Latina, com discussões que englobam os dois lados do Atlântico e um relevante público especializado e localizado em vários continentes. É considerado um dos fóruns mais tradicionais do Brasil para a reunião de especialistas, membros das forças armadas, corpo diplomático e altos representantes de governos e organizações que atuam na questão da segurança global.
Em 2024, com o Brasil na presidência do G20 e suas reuniões realizadas no Rio de Janeiro, a Conferência de Segurança Internacional do Forte ganhou projeção e se tornou uma importante plataforma, cujo desafio é ampliar as discussões sobre segurança e defesa global e uni-las ao debate do encontro oficial dos chefes de Estado do G20. Será uma oportunidade de destacar e reforçar as instituições multilaterais e dar espaço para novos modelos de cooperação internacional, capazes de facilitar encontros e mitigar o risco de conflitos armados.
Para orientar os debates, o evento é dividido em mesas temáticas. Entre elas, busca-se analisar as crescentes crises globais e o declínio da governaça baseada na ordem internacional vigente. No caso da América Latina, por sua história e cultura política, o ambiente de instabilidade internacional tem propiciado o aumento da erosão da democracia nos países e gerado situações de ameaças ao estado de direito. A violência das organizações criminosas fomenta migrações e crises humanitárias, insegurança econômica nos Estados, infiltração de representantes do crime na arena política, enfraquecimento das instituições democráticas e forte desconfiança da população com a aplicação das normas e leis. Ao explicitar as consequências do crime organizado, que se alimenta da insegurança global, ao mesmo tempo em que dá origem a tantas crises na região latino-americana e em outros continentes, torna-se primordial elaborar estratégias multilaterais para combatê-lo.
Os efeitos das mudanças climáticas também terão espaço para discussão, pois são elementos complexos que fomentam insegurança energética e alimentar, dificuldades de acesso à água potável e promovem a degradação ambiental. Tudo isso representa o surgimento de diversos novos tipos de ameaças ao ambiente internacional, desta vez resultando em migração, ruína econômica dos locais envolvidos e disputa entre os diferentes atores por fontes energéticas. Esta competição por recursos naturais é uma das origens das disputas por territórios e da briga por influência nos espaços de poder, afastando ainda mais as bases para a consolidação de uma governança multilateral.
Tradicionalmente voltada para a Europa e a América Latina, a Conferência de Segurança Internacional do Forte tem a pretensão de expandir ainda mais suas fronteiras e englobar novos temas que afetam de distintas maneiras as regiões do globo. Crises provocadas pelas mudanças climáticas e pelas redes transnacionais do crime organizado, os impactos dos conflitos internacionais, a desconfiança com o multilateralismo, os antagonismos geopolíticos, entre outros assuntos estarão presentes no evento. Fortalecer as bases para a cooperação internacional é nossa maior meta e a área de defesa e segurança representa um elemento fundamental nisso. Participe deste debate e junte-se a nós!
As queimadas no estado de São Paulo em agosto e setembro de 2024
Tatiana de Souza Leite Garcia[iii]
O estado de São Paulo possui extensão territorial de aproximadamente 248 mil km², com população estimada em 46,8 milhões de habitantes, distribuídos em 645 municípios. A economia é altamente diversificada, com destaque para agroindústria, financeiro, polos tecnológicos na capital e no interior, e amplo setor de serviços (médicos, educacionais, entre outros), os quais contribuem para compor o Produto Interno Bruto em torno de R$ 2,8 trilhões, o que representa cerca de 32% do PIB nacional.
As queimadas que aconteceram em São Paulo durante os meses de agosto e setembro de 2024, sobretudo em áreas no interior do estado, notadamente nas regiões de Ribeirão Preto, São José do Rio Preto e Araçatuba, devastaram grandes extensões de lavouras, especialmente cana-de-açúcar, além de áreas de vegetação nativa (mata atlântica e cerrado), afetando gravemente o meio ambiente, a economia e a saúde da população.
A condição atmosférica extremamente seca, com altas temperaturas, característica climática atípica para o inverno nesta região, combinado com baixos índices de precipitação, falta de umidade nos solos e ocorrência de ventos fortes, foram propícios para alastrar o fogo no estado. O governo suspeita que parte desses incêndios são de origem criminosa, por isso, a Polícia Federal está investigando e já efetuou prisões de suspeitos.
Ainda que o uso do fogo na colheita de cana-de-açúcar esteja legalmente limitado no estado de São Paulo, existem queimadas que são causadas por práticas ilegais de manejo agrícola, sem a devida autorização do órgão estadual responsável. A Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) suspendeu, temporariamente, as autorizações; e só serão emitidas autorizações que tenham por objetivo prevenir incêndios para criação de aceiros negros, ou mediante solicitação direta da Secretaria da Agricultura e Abastecimento com finalidade fitossanitária.
A legislação do estado de São Paulo pertinente ao tema, Lei nº 11.241/2002, estabelece a eliminação gradual da queima da palha da cana-de-açúcar até 2031. Em áreas mecanizáveis, essa prática foi amplamente reduzida, mas em áreas onde a colheita mecanizada é impraticável, ainda há permissão para queima controlada. A legislação visa reduzir os impactos ambientais, substituindo a queima pela colheita mecanizada, o que também melhorará a qualidade da biomassa utilizada para a geração de energia.
Os impactos econômicos desses incêndios são significativos, e estima-se que haverá perdas na safra de cana-de-açúcar em São Paulo que podem ultrapassar R$ 800 milhões, e afetará o mercado de etanol e açúcar, com possíveis aumentos nos preços, prejudicando produtores e consumidores finais. As usinas de processamento de cana-de-açúcar também foram severamente afetadas, com diversas operações paralisadas devido aos incêndios, prejudicando a geração de energia a partir da biomassa.
No aspecto ambiental, as queimadas provocam a degradação do solo, tornando-o menos fértil e apto para o replantio. Isso afeta diretamente a capacidade de rebrota das plantas, com impactos nas próximas duas safras, uma vez que as áreas atingidas pelo fogo podem levar anos para se recuperarem. Além disso, a perda de fauna e flora dos biomas naturais demandará ainda mais cuidados e tempo para recuperação.
Dentre os impactos sociais, as queimadas afetam diretamente as populações locais, que enfrentam problemas de saúde devido à inalação da fumaça, mal-estar, ardor nos olhos, doenças respiratórias e cardiovasculares. Outro aspecto a considerar são os trabalhadores rurais prejudicados pela perda de emprego temporário na colheita e indústria de cana.
Esses impactos transcendem os limites políticos-administrativos. Por exemplo, a região metropolitana da capital São Paulo tem sofrido diretamente com essas queimadas, que se avolumaram com a poluição local, ao ponto de não se ver o céu, o nascer do sol e com a pior qualidade do ar em comparação com outras cidades do mundo.
Portanto, as queimadas em São Paulo em 2024 trazem à tona a urgência em fortalecer as políticas de prevenção de incêndios e de adaptação do setor agrícola frente aos desafios das mudanças climáticas, com o uso de tecnologias mais sustentáveis e práticas agrícolas que minimizem a degradação socioambiental.
[i] Cientista político, doutor pela USP e parceiro da KAS.
[ii] Graduada em Ciências Sociais e Especialista em História das Relações Internacionais pela UERJ; Mestre em Ciência Política pela UFF; Coordenadora de Projetos da KAS Brasil
[iii] Pesquisadora de Pós-Doutorado no Departamento de Geografia da USP, Doutora em Geografia Humana pela USP, Mestra em Geografia e Gestão do Território pela UFU, Graduada em Relações Internacionais e Geografia.