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Relações entre Brasil e Bolívia: fortalecimento e refluxo

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Paulo Gustavo Pellegrino Correa

O presente texto tem por finalidade discutir as relações entre Brasil e Bolívia nas últimas duas décadas. A Bolívia compartilha sua maior fronteira com o Brasil e representa para a política externa brasileira (PEB) um parceiro estratégico e prioritário. Desde o fim do século XX as relações entre os dois países passaram por intenso fortalecimento que refletiram trocas comerciais, cooperação energética, cooperação fronteiriça, acordos bi e multilaterais e também tensões derivadas do amadurecimento da aproximação. Destacaremos a importância do Estado Plurinacional da Bolívia na América do Sul e para o Brasil e a evolução das relações principalmente no período que coincidem os governos de Lula da Silva e Evo Morales.

A importância da Bolívia na América do Sul e para o Brasil

O Estado Plurinacional da Bolívia tem aproximadamente dez milhões de habitantes distribuídos majoritariamente em áreas urbanas em nove departamentos. O país tem buscado consolidar sua estabilidade política principalmente depois que o presidente Evo Morales lançou reformas políticas e econômicas a partir de 2005. As reformas incluíram uma importante modificação da Constituição, o fortalecimento do papel do estado na economia e a aplicação de uma variedade de programas sociais. Como resultado das exportações de alto preço das matérias-primas, como o gás natural, e de uma política macroeconômica prudente, o crescimento econômico da Bolívia tem uma média de 4,8% ao longo dos últimos anos, apresentando significativos superávits em conta corrente desde 2003 e tornou o equilíbrio fiscal positivo em 2006 .

Mesmo apresentando avanços, alguns dados colocam a Bolívia diante de expressivos desafios socioeconômicos: o país têm o menor PIB per capita da América do Sul (US $2,220 em 2012) e o maior índice de desigualdade entre os países sul-americanos (Índice GINI 53.3); está classificado no Failed State Index 2010 como o 53º estado mais fracassado no mundo e o 2º na América Latina.

Entretanto, seus desafios socioeconômicos não retiram sua importância regional. A Bolívia está localizada dentro da América do Sul, em uma região, em termos geopolíticos, chamada de heartland (ver mapa 1), representando o “coração do subcontinente. A composição do seu território apresenta regiões importantes como a Cordilheira dos Andes, a Bacia do Prata e a Amazônia Transnacional, essas últimas duas compartilhadas com o Brasil. A Bolívia ainda compartilha tríplices fronteiras com todos os cinco países do seu entorno geográfico. Esses dados dão natural e significativa importância para o país na articulação e convergência do seu entorno geográfico e, consequentemente, no processo de integração regional.

Relações Brasil e Bolívia: convergências de mentalidades

Desde a década de 1990, o Brasil, nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010), o entorno geográfico brasileiro passou a ter maior destaque na política externa do país. Em 2000, aconteceu a I Reunião de Cúpula da América do Sul, em Brasília, promovida pela chancelaria brasileira ainda no governo de Cardoso. O Encontro representou um marco nas relações do Brasil com o subcontinente.

Com estratégias que apresentavam diferenças e continuidades, a política externa do Brasil nos governos de Lula da Silva (Lula) e Fernando Henrique Cardoso (FHC) focaram no subcontinente sul-americano. FHC buscou dialogar com as organizações internacionais (ONU, OMC), com as iniciativas regionais (Mercosul) e hemisféricas (ALCA) em uma estratégia denominada “autonomia pela integração” . Lula, por sua vez, teve como estratégia a “autonomia pela diversificação”, que consistia em contribuir para um maior equilíbrio internacional buscando atenuar o unilateralismo do mundo pós 11 de setembro; fortaleceu relações bilaterais e multilaterais de forma a aumentar o peso do país nas negociações políticas e econômicas internacionais; adensou relações diplomáticas no sentido de aproveitar as possibilidades de maior intercâmbio econômico, financeiro, tecnológico e cultural; e evitou acordos que pudessem comprometer, a longo prazo, o desenvolvimento.

O contexto regional do primeiro mandato do governo Lula foi de uma convergência de mentalidades dos dirigentes sul-americanos, que passaram a questionar o paradigma da globalização benigna neoliberal presente na região nos anos 1990s e buscaram fortalecer iniciativas regionais de integração. Na esteira do novo momento, a concepção dos projetos de integração regional que floresceram nos anos 2000 não era única e hegemônica. Entretanto, muitos dirigentes da América do Sul buscaram pensar os projeto integracionistas, não os limitando a “questões econômicas e comerciais, ampliando seu escopo para aspectos políticos, sociais e de segurança; uma maior consolidação da ideia de América do Sul na política externa dos países do subcontinente que apresente uma maior unidade política, econômica e de segurança que a idéia de América Latina ”.

A atuação direta do presidente e de seus burocratas de primeiro escalão nesse processo foi veemente. Lula utilizou-se do recurso da diplomacia presidencial com maior frequência que seu antecessor, ou seja, participou pessoalmente das relações internacionais, seja por meio de pronunciamentos, seja através da participação em foros internacionais, seja atuando diretamente em negociações e se transformando no principal condutor da política externa. O destino principal das viagens de Lula foi a América do Sul. Os dados do Ministério das Relações Exteriores apontam que, em visitas bilaterais, a Bolívia foi o terceiro país mais visitado por Lula, atrás apenas da Argentina e Venezuela e à frente de países como Estados Unidos, França e Reino Unido.

A política externa de Dilma Rousselff, desde o início de seu mandato em 2011, foi caracterizada por uma continuidade no perfil de seu antecessor, mas ao mesmo tempo, num processo de contenção, foi menos propositiva e ousada . Seu perfil pouco disposto às ações internacionais refletiu na diminuição do papel do MRE e do protagonismo do Brasil na região.

No bojo do fortalecimento das relações com o entorno geográfico, as relações do Brasil com a Bolívia são percebidas pela PEB como prioritárias. Iniciativas em diferentes áreas, como cooperação energética e fronteiriça no combate a ilícitos, na articulação regional e mundial em diferentes espaços internacionais são parte do aprofundamento das relações bilaterais entre Bolívia e Brasil. Em 2012 a Bolívia assinou o Protocolo de adesão ao MERCOSUL, dando seguimento a sua entrada como membro efetivo e fortalecendo ainda mais sua proximidade com o Brasil no contexto multi e bilateral.

Podemos perceber, nas estatísticas entre os dois países, que as relações comerciais sofreram intensas transformações, principalmente no que tange às importações brasileiras da Bolívia. Fato explicado pela construção do gasoduto Bolívia- Brasil, que abastece regiões de grande importância econômica brasileira. É a importação desse gás que coloca o estado boliviano como o único país da América do Sul a ter déficit comercial com o Brasil.

Outro dado interessante na relação Brasil-Bolívia é referente aos projetos de cooperação entre esses países. A política externa brasileira, desde o fim da Guerra Fria, buscou na cooperação a construção de um instrumento de aproximação com outros países. Porém, a partir do governo Lula intensifica-se um modelo de cooperação mais horizontal, focando países do hemisfério sul, principalmente na América Latina. A partir da eleição de Evo Morales, em 2005, a convergência de interesses e mentalidades reflete na relação de cooperação, como apontam os dados do gráfico abaixo.

Sobre as relações migratórias entre Bolívia e Brasil destaca-se o aumento do fluxo entre os dois países. Na Amazônia Transnacional, a porção brasileira acolhe principalmente bolivianos (15,31%) e a Amazônia boliviana, por sua vez, concentra grande número de brasileiros (64,43%) , o que faz com que as cidades fronteiriças entre os dois Estados tenham intensa relação econômica, social e cultural.

Fora da região de fronteira destaca-se o processo migratório de bolivianos para a cidade de São Paulo que, de acordo com a Pastoral dos Migrantes Latino-Americanos , pode reunir um grupo de até 100 mil pessoas constituído por profissionais liberais, comerciantes, donos de oficina e, principalmente, trabalhadores clandestinos em oficinas de confecção submetidos a condições precárias de trabalho.

A presença da comunidade boliviana no centro da maior cidade do país e seus arredores é algo de fácil constatação, assim como sua influência cultural manifestada na culinária, vestimenta, artesanatos e espaços públicos, como a feira que se estabelece na Praça Kantuta em São Paulo, frequentada por bolivianos e pela comunidade paulistana, de forma geral. Isso significa que a cosmopolita cidade de São Paulo, ao ter sua formação étnico-cultural descrita, tem incondicionalmente que adicionar na lista que inclui italianos, árabes e japoneses, a comunidade boliviana.

Entretanto, faz-se mister destacar que as relações entre os dois países não foi composta apenas de crescimentos e aproximações. Episódios de tensão estiveram presentes, principalmente no que tange às relações comerciais e os projetos conjuntos. Podemos destacar, em nosso recorte temporal, dois acontecimentos: a nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia e os projetos no Parque Nacional e Território Indígena Isiboro-Sécure.

Com a segunda maior reserva de gás natural na América do Sul , a Bolívia tem no setor de hidrocarbonetos sua maior fonte de divisas. A empresa brasileira Petrobras, a espanhola Repsol, a francesa Total e as inglesas BP e BG são as maiores corporações internacionais explorando o gás boliviano. A Petrobras e a Repsol controlam 70% da exploração e transporte do gás boliviano – que está em parte localizado na Amazônia boliviana.

No dia primeiro de maio de 2006, o presidente Evo Morales anunciou o decreto 28701, que nacionalizava o setor de hidrocarbureto e ocupou com forças policiais e militares todos os escritórios, refinarias e demais dependências das empresas do setor. Apesar da aparente surpresa de alguns setores no Brasil, a questão da nacionalização de setores estratégicos na Bolívia é um processo que se desenvolveu nos anos 2000, passando pela “guerra do gás” e eleição de Evo Morales.

É importante ressaltar que o decreto do governo Evo Morales fez parte de um processo legal-democrático respaldado, em âmbito nacional, pela Constituição boliviana de 1967 e pela lei de hidrocarbonetos de 2005 que, por sua vez, é resultado de um plebiscito junto à população realizado em 2004. No âmbito do direito internacional, a medida se respalda na resolução 1803 da Assembleia Geral das Nações Unidas, que garante às nações a soberania dos recursos naturais e o direito a reclamar sua nacionalização.

A ação não foi feita apenas de forma burocrática: a nacionalização se desenvolveu com a ocupação física das dependências das empresas que exploravam o gás boliviano por tropas militares e policiais. O uso dos agentes de força do estado não era devido a possíveis resistências físicas nas dependências das empresas, mas estaria mais ligado à força simbólica dos militares no processo de nacionalização, fortalecendo, assim, os signos da securitização.

A reação brasileira à nacionalização do gás foi de cautela e de pouca contundência, o que gerou protesto e indignação no plano nacional . Entretanto, de acordo com o governo, essa atitude era estratégica no sentido de não desencadear ações ainda mais radicalizadas. Para o então Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, a reação brasileira se respalda não apenas na possibilidade de desencadear uma ação irracional, mas também adiciona a relevância da profundidade da relação entre Brasil e Bolívia.

Celso Amorim destaca que o relacionamento com a Bolívia é uma relação de estado e que o país é um parceiro estratégico para o Brasil e sua posição geográfica faz com que uma integração ocorra de qualquer forma: pelo comércio, pela tecnologia, pela cooperação, pela cultura ou pelo narcotráfico, pela guerrilha ou pelo contrabando (p. 48-49) .

As consequências do processo de nacionalização do gás boliviano são diversas e afetam de forma diferente os atores envolvidos. Após as vendas de suas refinarias na Bolívia, em 2007, a Petrobras assumiu que, embora não tivesse mais qualquer interesse na participação do processo de refino, as atividades de exploração de gás natural seriam mantidas por conta da dependência do Brasil diante do combustível boliviano . Houve uma diminuição dos investimentos da empresa brasileira na Bolívia logo após a nacionalização, mas a multinacional voltou a investir no país em parceria com a YPFB. A reação de “firmeza e tranqüilidade” do governo brasileiro buscou garantir o fornecimento do gás ao país e o não comprometimento de possíveis cooperações futuras. Ao nosso ver, ambos os objetivos foram contemplados.

Entretanto, os acontecimentos na Bolívia refletiram-se no processo de integração ao gerar desconfiança entre atores regionais e por haver no processo ações ameaçadoras como a ocupação de forças policiais e militares nos escritórios das empresas petrolíferas. Destacamos também que atores regionais (organizações, países) não foram de forma alguma representativos na resolução do impasse. O processo de nacionalização dos hidrocarbonetos bolivianos aconteceu justamente em um período de maturação de organizações regionais, após a assinatura da Declaração de Cuzco, que anunciou a fundação da então Comunidade Sul-Americana de Nações, precursora da Unasul sem nenhum país da região ou instituição ser consultado.

O outro episódio de tensão trata-se da construção de uma estrada na Bolívia que liga os departamentos de Beni e Cochabamba. Os acontecimentos na Bolívia e no Peru, em 2011, levantaram questões em diversos níveis: primeiramente, local, com o envolvimento de comunidades indígenas contrárias à construção da estrada que atravessa parte do território boliviano no Parque Nacional e Território Indígena Isiboro-Sécure (Tipnis); em seguinda, nacional, com a forte repressão às manifestações por parte do presidente indígena Evo Morales e seu desejo de dinamizar a fraca economia boliviana; e, por fim, regional, por ser uma obra financiada pelo Brasil através do Banco Nacional para o Desenvolvimento Econômico (BNDES) e ter a sua execução por empresas brasileiras.

A Obra no Parque Nacional e Território Indígena Isiboro-Sécure representava para o presidente Morales uma oportunidade de dinamizar a economia boliviana. Para as comunidades indígenas da região em questão, por sua vez, a estrada representou uma ameaça do ponto de vista ambiental e social. Os movimentos contrários tiveram efeito, pois protestos organizados pelas comunidades de Tipn is comprometeram ainda mais a popularidade do governo de Morales, que paralisou as obras e, depois da truculência com que foi tratada a manifestação indígena contra a estrada por parte da polícia boliviana, o governo boliviano teve ministros de pastas importantes, como da Defesa e do Interior, renunciando incondicionalmente.

Tal episódio poderia ser tratado apenas como um caso isolado sem grandes repercussões domésticas ou regionais. Entretanto, é importante situar a organização contra a construção da estrada dentro de um elemento político importante na construção do Estado boliviano, que data desde o período colonial até os dias de hoje: o movimento indigenista. Apesar de ter em seu histórico longos períodos de hegemonia branca na política do país, revoltas e movimentações indígenas bem organizadas conseguiram estabelecer importantes conquistas históricas, como autonomia de facto em suas terras até a eleição de um presidente proveniente de organizações indígenas como o próprio Evo Morales.

Conclusões

Desde 2000, os países da América do Sul buscaram consolidar o subcontinente como uma região geopolítica dotada de unidade mínima e arcabouço institucional baseados em princípios e macro-objetivos comuns nas relações internacionais. Iniciativas como Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), a União das Nações Sul-Americas (UNASUL) e o fortalecimento do Mercosul são parte do arcabouço.

A já mencionada convergência de mentalidades é um fator que ajudou a região se fortalecer e as relações entre Brasil e Bolívia estiveram na esteira desse processo como sujeito e objeto. As estatísticas demonstram que a Bolívia se tornou cada vez mais robusta nas parcerias regionais. O refluxo da PEB desde a entrada de Dilma Rousselff, não demonstra ter atingido a relação entre os dois países, ratificando que laços econômicos, sociais e políticos fortalecidos nos últimos anos demonstram solidez na relação entre os dois Estados.

Entretanto, para que a convergência de mentalidades – ocasião que surge na relação entre governos – se estabeleça como uma oportunidade de consolidação de laços que perdurem mais que as passagens de grupos temporariamente no poder, é preciso entender as ações diplomáticas como uma política de Estado. Os episódios de tensão que mencionamos em nosso texto demonstram as fragilidades de projetos substanciais entre Brasil e Bolívia e a chancelaria de ambos os Estados deve estar atenta às potencialidades da aproximação, aos caminhos para evitar os conflitos e, em última instância, à forma de resolução desses conflitos.

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