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Brasil e Venezuela - II

Brasil e seus vizinhos

As relações entre Brasil e Venezuela: do vizinho ausente à parceria estratégica

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As relações entre Brasil e Venezuela: do vizinho ausente à parceria estratégica

Edmundo González Urrutia

I.Introdução:

Durante várias décadas, até a irrupção do projeto político que inspirou o Tenente Coronel Hugo Chávez em 1998, Venezuela foi um país reconhecido e respeitado por desenvolver uma política exterior de Estado cuja ação internacional desempenhava um papel construtivo a favor da liberdade e da democracia; a promoção e defesa dos Direitos Humanos; a consolidação da integração hemisférica; a cooperação Sul-Sul; o equilíbrio internacional; a descolonização; a democratização dos organismos internacionais e as iniciativas dirigidas à busca da paz.

Todos esses processos foram deslocados da agenda de política externa e foram substituídos por prioridades focadas na ideologia e na construção de alianças geopolíticas –algumas de credibilidade muito duvidosa – que serviram para obter respaldos no contexto de uma Nova Geopolítica Internacional traçada pelo governo como roteiro nas relações internacionais.

Entre os objetivos da política externa dos últimos 16 anos se destacam a integração latino-americana e a consolidação da multipolaridade. Na verdade, esses dois elementos já faziam parte da ação internacional da Venezuela durante os governos da “República Civil” a partir de 1958, incluído aí a aproximação com o Brasil, especialmente durante os anos noventa.

Dentro desse contexto, o aprofundamento das relações com o Brasil, que se desenvolveram após o surgimento de Hugo Chávez na cena política, se insere em uma nova estratégia de múltiplas variáveis que desempenhou um papel de primeira ordem na ação internacional da República.

É assim como depois de muitos anos de uma realidade entre vizinhos oscilando entre a suspeita cautelosa e expansionista e a aproximação tímida, porém progressiva iniciada nos anos 70, Venezuela e Brasil começaram a construir uma relação dinâmica baseada em ambiciosas variáveis geopolíticas, geoestratégicas, econômicas, de complementariedade energética e coincidências ideológicas no plano político interno e internacional. Todos estes fatores escorados por importantes negócios que colocam o Brasil não apenas como um “sócio estratégico” essencial, mas também como um elemento central para a economia venezuelana, principalmente em termos de comércio e investimentos.

Realmente, durante muito tempo, o Brasil foi para a Venezuela um “vizinho ausente”. A sociedade venezuelana e seus dirigentes viam com suspicácia certas pretensões expansionistas que o “gigante do sul” parecia vislumbrar, percepção influenciada pela filosofia dos governos militares do Brasil (González, 2011).

Por outro lado, a aplicação da “Doutrina Betancourt” manteve um cerco aos regimes ditatoriais no Brasil. Assim, durante os governos de Rómulo Betancourt e de Raúl Leoni se interromperam as relações diplomáticas, o que não impediu, porém, a solidariedade com as instituições democráticas da sociedade civil. O discurso oficial desses anos refletia essa postura.

Após a volta do regime democrático no Brasil, as relações gradativamente foram se situando em novos níveis de cooperação que alcançaram algo grau de dinamismo que se prolongará por muito tempo. Os anos noventa, especialmente durante os mandatos de Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), situaram as relações bilaterais em um novo plano que respondia a interesses e realidades convergentes entre países vizinhos.

É preciso fazer uma menção especial ao período de 1994-1998, período em que se iniciou uma agenda de contatos no âmbito presidencial que geraria o “Protocolo de la Guzmania” (subscrito pelos Presidentes Itamar Franco –Brasil- e Rafael Caldera –Venezuela) que estabeleceu o Primeiro Mecanismo Político de Consulta e a Comissão de Alto Nível, a partir dos quais seria desenvolvida uma agenda de trabalho que incluía os temas de energia, comércio e integração; transporte; comunicações e desenvolvimento fronteiriço.

Com a vitória eleitoral de Hugo Chávez na Venezuela, começaram a surgir os primeiros sinais daquilo que mais tarde viria a ser a confirmação de uma aliança inédita com o Governo de Lula, inspirada em uma estreita relação pessoal e coincidências ideológicas que marcarão oito anos de uma sociedade sem precedentes nas relações bilaterais, aliança que teria impacto tanto no plano interno quanto no internacional (González, 2011).

Assim, durante o período 2003-2007, das 62 visitas realizadas por Lula a países sul-americanos, a Venezuela se destaca por tê-lo recebido 16 vezes. E do mesmo modo, entre 2003 e 2010, Chávez foi o presidente sul-americano que mais vezes visitou o Brasil, em um total de 20 nesse período (Hitner, 2012).

Os programas sociais da administração de Lula, o chamado “Plano Fome Zero” e o ativismo internacional de seu governo, tanto no chamado G-20 quanto no grupo de países emergentes (Índia, China, África do Sul) proporcionaram a ele credenciais para se elevar como um dos principais líderes mundiais e certamente para exercer uma liderança efetiva no plano regional que se cristalizará em importantes iniciativas internacionais como a criação da União Sul-americana das Nações (UNASUR), o Conselho de Defesa Sul-americano, a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) -iniciativa que responde à tese impulsada por México e Brasil em 2008- para citar apenas as mais relevantes.

Nesta mesma ordem, e em sintonia com a tese do governo brasileiro de promover e privilegiar os temas sociais, a posição assumida pela Venezuela em diversos foros internacionais nos primeiros anos do chamado “processo revolucionário”, esteve orientada para impulsar a “Agenda Social” como elemento de política externa. Essa tendência estava presente tanto no âmbito sub-regional, durante a XIV Cúpula Presidencial Andina, como no âmbito hemisférico, dentro da Reunião de Alto Nível sobre Pobreza, Equidade e Exclusão Social; na proposta para a criação de um Fundo Humanitário Internacional para enfrentar a pobreza -seguindo o modelo brasileiro-; e a ativa participação na Cúpula do Milênio das Nações Unidas, para mencionar apenas algumas iniciativas concretas (González, 2006).

II.A crise de governabilidade:_

Os anos 2002 e 2003 foram turbulentos no plano político da Venezuela. Os acontecimentos de abril de 2002 e a separação temporária do poder do presidente Chávez significaram uma mudança de prioridades nos planos e objetivos de construir uma malha de relações estratégicas, objetivo que ele mesmo havia se proposto anteriormente. As circunstâncias internas estimularam o governo a buscar não apenas sua legitimação no cenário internacional, mas também a recuperação da confiança que as autoridades exigiam para assegurar a governabilidade.

A extrema polarização da sociedade venezuelana e a violência política vivida nesses anos foi motivo de preocupação para a Comunidade Internacional. A paralisação da indústria petrolífera somou novos elementos que contribuiriam para afetar a visão do país como um fornecedor confiável e seguro de petróleo. A OEA, o Centro Carter e o Grupo de Países Amigos, liderados pelo Brasil, entram em cena para tentar conseguir uma solução pacífica para a crise da Venezuela. As árduas e complexas negociações abriram caminho para a realização do Referendo Revocatório do Presidente.

No dia 15 de janeiro de 2003 foi constituído o chamado “Grupo de Amigos”, iniciativa proposta pelo Presidente Lula para contribuir com o trabalho facilitador da OEA na busca por uma saída para a crise política venezuelana. O grupo estava formado por Brasil, Estados Unidos, Espanha, Chile, México e Portugal. Aliás, não foi por acaso que Gilberto Saboia, representante brasileiro, foi escolhido como coordenador do grupo, acompanhando o vice-chanceler Ruy Nogueira, nem foi casual que os diálogos tenham acontecido no Palácio do Planalto em Brasília. São bem conhecidos, além disso, os esforços de contenção realizados pelos diplomatas brasileiros para manter o Presidente Chávez na negociação. Sob a pressão da crise interna, ele esteve a ponto de abandonar a mesa de diálogo com a oposição venezuelana. E também conseguiram convencê-lo a desistir da ideia de incluir no grupo outros países como a Argélia, a China e a Rússia.

Desde o início deste processo de negociação entre o governo e a oposição da Venezuela, o protagonismo do Brasil ficou confirmado nesse mecanismo, no qual as autoridades desse país concentravam suas esperanças de superar os graves acontecimentos.

III.Um novo momento nas relações bilaterais:

O triunfo do Presidente Chávez no Referendo Revocatório de agosto de 2004 foi um divisor de águas. E não apenas do ponto-de-vista político interno, funcionou também como uma espécie de salvo-conduto para avançar no aprofundamento do processo revolucionário.

Sendo assim, com o aval internacional, levaram adiante o desenho de uma estratégia mais radical ou “soberana”, como seus executores qualificariam. A partir desse momento, fica concluído o período inicial de transição e é iniciada uma nova etapa da política externa e isso fica claro na substituição do esquema tradicional de inserção internacional da Venezuela que havia construído durante a democracia.

Algumas ações da diplomacia venezuelana anunciam os ventos de mudanças que estão soprando na América Latina em termos de definição de novos eixos ideologicamente contrapostos. Por um lado, o eixo composto por Caracas/Brasília/Buenos Aires, que, segundo o governante venezuelano, “outros vão tentar enfraquecer ou dividir”. E o outro eixo, formado por Bogotá/Quito/Lima/Santiago de Chile, que supostamente estaria dominado pelo Pentágono. Para o governante venezuelano, “esse é o eixo Monroísta e nossa estratégia deve ser rompê-lo e formar a unidade sul-americana” (González, 2006).

Nesse momento, Chávez esboçou os desafios de um processo político com que estava decidido a se inserir nos espaços mundiais que lhe permitiriam promover com mais força esse “Novo Sistema Multipolar Internacional”. Para alcançar este objetivo, propôs a necessidade da articulação de redes de apoio à “Revolução Bolivariana” e a organização de grupos e atores sociais que compartilhavam seus ideais e que estavam dispostos a fomentar o novo modelo político. O próprio Presidente se referiu especificamente a governos aliados, entre eles o Brasil; aos grupos de apoio internacional; às correntes indígenas da Bolívia, Equador e Peru; aos movimentos camponeses da América Central; ao Movimento dos Sem Terra do Brasil; e ainda a grupos intelectuais, entre outros.

A agenda internacional venezuelana no âmbito econômico esteve dominada pelo uso do petróleo como elemento fundamental na construção de novas alianças; as críticas recorrentes ao modelo neoliberal; as convocações para transcender o modelo capitalista; as contradições na política de integração latino-americana em detrimento da CAN e a incorporação ao MERCOSUL que, junto à tese da Integração Bolivariana -ALBA-, buscava fazer oposição aos Estados Unidos.

Em diferentes oportunidades, o governante venezuelano e outros porta-vozes da sua administração haviam deixado claro que um “objetivo estratégico” da política internacional da Venezuela seria conseguir a incorporação ao MERCOSUL. Partia-se de uma visão “anfictiônica” da integração, aquela inspirada no ideário do Libertador Simón Bolívar, que convocava para a formação de uma Confederação de Nações Unidas por um pacto que abrangia todos os âmbitos políticos e econômicos. Além disso, na opinião do dignitário recém-eleito, incluía também um “Pacto Militar” de defesa diante das ameaças externas.

Esta visão da integração se direcionava, em seu critério, para superar o velho esquema que representava “um modelo econômico de exploração, um modelo político de dominação e um modelo social de exclusão”. O discurso revelava já então a aspiração de propiciar una “integração plena”, ainda que subordinada à “vontade política da integração”. O aspecto econômico, em suas próprias palavras, era “um componente necessário, mas nunca suficiente para avançar na direção de etapas superiores de integração, de solidificação, de melhoria real das condições de vida” (Chávez, 2000).

Na execução desta iniciativa, as autoridades venezuelanas contaram com o apoio decisivo do Brasil para conseguir sua entrada no Mercosul, mas alguns analistas advertiram que essa decisão poderia não apenas alterar o equilíbrio econômico e político do mecanismo, mas também dar espaço para certa competição de liderança com Lula, que já tinha sua visão particular de promover a integração na região. Na verdade, para o governo da Venezuela, semelhante decisão se inscrevia como uma jogada política dirigida a recompor o tabuleiro geoestratégico sul-americano dentro do debate ideológico que dominava a política exterior.

O Presidente Chávez gerenciou com habilidade as contradições, a dialética e o confronto nas relações internacionais. Desde o começo, emitiu sinais de um claro voluntarismo e administrou a política externa em termos maniqueístas, sem nuances nem meios termos, incluindo determinados rasgos messiânicos que estiveram sempre presentes no discurso político como uma evocação permanente ao espírito de Bolívar e sua epopeia anti-imperialista.

Nesse sentido, e tal e como o fez no plano interno, na frente internacional dividiu a América Latina entre “supostos bons e maus”. É descrito assim por um renomado acadêmico e diplomata venezuelano:

Por motivos ideológicos 'revolucionários', a Venezuela rompeu, desde o começo do regime chavista, seus vínculos com a área andina e com a do Pacífico, influenciada por tendências políticas moderadas ou de centro-direita, e direcionou sua ação externa quase que exclusivamente para o sul –alianças plasmadas no Mercosul e na Unasul-, guiado em grande parte pelos cantos de sereia de um Brasil ao mesmo tempo muito democrático internamente e muito hábil nos negócios no mundo externo, que com um cinismo passível de críticas adulou o líder venezuelano e o alentou em seu personalismo e em suas simplificações doutrinárias, para poder fortalecer seu próprio controle sobre áreas importantes da economia venezuelana, e utilizar a Venezuela (segundo antigos esquemas geopolíticos ainda vigentes) como “saída para o norte' (Boersner, 2013, Revista SIC, pág. 519).

Neste contexto, o governante venezuelano se esforçou para destacar suas coincidências com o Brasil quanto à defesa da autonomia regional enfrentando as ambições imperiais do norte, desconhecendo que se tratava de uma suposta aliança com fundamentos frágeis, uma vez que entre os dois estilos de governo havia antagonismos entre fórmulas democráticas e autoritárias.

Assim, a amizade do s governantes democráticos brasileiros com o regime venezuelano se explica por motivos de interesse econômico e estratégico, e não por uma questão de identidade ideológica” (Boersner, 2013, Revista SIC pág.518).

IV.Uma política de integração equivocada:

O governo venezuelano pretendeu apresentar-se como paladino da integração latino-americana, quando na realidade o que conseguiu foi destruir os produtivos esquemas de integração regional existentes. Trata-se, no fundo, de uma liderança falsa que desencadeou a divisão, o desmantelamento de esforços prévios, o fomento de antagonismos e de lealdades interessadas, e que, em suma, deu prioridade aos interesses estrangeiros, arruinando o setor privado e abrindo espaços econômicos privilegiados para países supostamente próximos no âmbito ideológico, como Brasil, China, Índia e Rússia.

Uma das linhas estratégicas iniciais foi a de enfraquecer as atividades da Comunidade Andina, tornando-se primeiro um dos membros com mais violações às normativas, passando pela erosão declarada da sua institucionalidade, para terminar com a denúncia do Acordo de Cartagena, sob o argumento de que a Comunidade Andina servia apenas às elites e às empresas transnacionais, ao mesmo tempo em que anunciava o seu propósito de entrar para o Mercado Comum do Sul.

Do mesmo modo, foi cancelada nossa participação no Grupo dos Três (México, Colômbia e Venezuela), acusando o grupo de fomentar práticas neoliberais e de ser inconveniente para os interesses da Venezuela.

O abandono da Comunidade Andina e do G-3 devia supostamente contribuir para reforçar a entrada da Venezuela no MERCOSUL, decisão que foi tomada sem consultar os setores produtivos nacionais e que acarretou sérios riscos para a maltratada capacidade produtiva nacional, cada vez mais prejudicada pela onda de expropriações e pela supervalorização do bolívar. No entanto, sua admissão ficou paralisada durante mais de seis anos pela oposição do Paraguai em ratificar o protocolo de entrada, porque considerava que a Venezuela não cumpria com os requisitos democráticos exigidos nos instrumentos constitutivos do bloco, e só pôde ser concretizada por meio de uma decisão política que violou seu ordenamento legal.

Portanto, a UNASUL é, até certo ponto, o resultado de um desenho geopolítico brasileiro dentro do arcabouço de sua busca por autonomia, e de sua vontade de se transformar em uma potência regional e global. Tem um tratado constitutivo que entrou em vigor no dia 11 de março de 2011, em que fica estabelecido o caráter eminentemente político da organização e a importância que os países membros dão à adoção de políticas comuns e à cooperação que possa ser consolidada em áreas não comerciais. As metas econômicas aparecem diluídas em uma agenda com objetivos muito amplos. Ou seja, é uma organização que pode ser definida como de cooperação política, tendendo a estabelecer uma estrutura permanente que favoreça o diálogo político e estruturado entre seus membros, bem como combinações políticas em diversas áreas.

V.A Aliança Estratégica: um novo momento nas relações bilaterais:

Em 2005, foi concretizada a “Aliança Estratégica” entre Brasília e Caracas, com a assinatura de acordos e compromissos dentro de uma ampla variedade de matérias. O aprofundamento desses vínculos a transformou em uma sociedade muito privilegiada que se traduziu em um incremento extraordinário das exportações brasileiras para a Venezuela.

A nova agenda incluía o lançamento do projeto para a criação da refinaria Abreu de Lima em Pernambuco (projeto que, como outras propostas ambiciosas, não chegou a se concretizar); a construção da segunda ponte sobre o Rio Orinoco; a construção de um estaleiro; o projeto de gasoduto do sul (outro plano grandioso que pretendia construir um gasoduto para gás natural com uma extensão entre 8.000 e 15.000 quilômetros de comprimento que conectaria Venezuela, Brasil e Argentina com um custo estimado entre 17 e 23 bilhões de dólares. O próprio Chávez diria depois que o interesse pelo projeto “havia congelado”); a constituição de novas empresas mistas petrolíferas (algo que nunca se materializou), a construção da linha 5 do metrô de Caracas; o projeto subscrito pela PDVSA e pela PETROBRAS para a criação da Petroamérica, uma iniciativa de integração energética que também não chegou a ser concretizada; e diversos programas de cooperação em matéria agrícola, saúde, industrial, petroquímica e energia hidrelétrica. Em resumo, uma diversidade de projetos e programas de cooperação que transformaria a Venezuela em um dos principais sócios políticos e econômicos do Brasil.

Apesar das sintonias e coincidências ideológicas, no plano internacional os dois governantes transitavam por rotas estratégicas diferentes que com o desenrolar dos acontecimentos revelariam as sutis diferenças entre os dois e o gradativo distanciamento de Lula de alguns dos presunçosos projetos de Chávez e, com o tom impetuoso de seu discurso anti-estadunidense.

Devemos lembrar que, para muitos observadores políticos, Chávez era um dirigente que estava claramente posicionado mais à esquerda do que o mandatário brasileiro. Apesar disso, os dois souberam administrar suas diferenças políticas para que prevalecesse o ambiente de cordialidade que distinguiu estas relações. Cada um gerenciou os próprios interesses, às vezes contrapostos, sob esse paradigma.

Mas, na realidade, o discurso contraditório do Presidente Lula era algo que não parava de surpreender. Uma vez, poucos dias antes da primeira turnê da chanceler alemã Angela Merkel pela América Latina, declarou à revista Der Spiegel : “Chávez é sem dúvida o melhor presidente que a Venezuela teve em cem anos ", declaração insólita que gerou muitas críticas nas filas oposicionistas.

No entanto, as políticas que Lula aplicava no próprio país não tinham nada a ver com as diretrizes seguidas pelo dirigente bolivariano. Enquanto Lula seduzia investidores estrangeiros e fazia do Brasil um destino atraente, Chávez os espantava e os investimentos na Venezuela caíam vertiginosamente. Enquanto Lula estreitava laços com empresários nas reuniões de Davos, Chávez fazia o mesmo com Bielorrússia, Irã e Cuba. Enquanto a produção de petróleo da Venezuela entrava em queda por falta de investimento, a Petrobras conseguia, graças aos investimentos em tecnologia, descobrir uma das jazidas petrolíferas mais importantes dos últimos tempos (Naím, 2008).

Em outras palavras, Lula alentava os projetos presunçosos do líder do socialismo do século XXI, mas ao mesmo tempo se assegurava de que nenhuma dessas iniciativas chegasse a se materializar. Apesar disso, Lula foi um personagem essencial no respaldo incondicional a Chávez. Com seu silêncio cúmplice e tolerante, outorgou a ele uma valiosa legitimidade internacional. Tudo isso foi resumido por um conhecido analista internacional quando escreveu: “Por tudo isso, Lula entrará para a história como um presidente muito bom para o seu povo e um péssimo vizinho para os amantes da liberdade” (Naím, 2010).

Este alinhamento de Lula com Chávez incluía um claro intervencionismo nos assuntos internos da Venezuela. Sem nenhum constrangimento, durante a campanha eleitoral de 2012, no encerramento de uma reunião do Fórum de São Paulo celebrada em Caracas, Lula enviou uma mensagem gravada em que oferecia seu respaldo pleno à reeleição de Chávez.

VI.A continuação:

O primeiro Governo de Dilma Rousseff continuou as linhas mestras da política exterior iniciada por Lula, mas foram observadas algumas diferenças tênues em comparação com o antecessor, principalmente em assuntos como as relações com os Estados Unidos, a postura em relação ao Irã, para mencionar apenas algumas. Inclusive, no âmbito bilateral, foram vários os temas que marcaram distância entre o novo Governo de Dilma e o da Revolução Socialista:

O Brasil não compartilha a tese da multipolaridade que a Venezuela defende, excluindo os Estados Unidos; também não coincidem em relação ao problema nuclear iraniano; algo parecido acontece em relação ao respaldo do Itamaraty às reformas econômicas implementadas em Cuba e finalmente quanto ao papel que os mecanismos de integração regional devem desempenhar. No entanto, a decisão do Executivo brasileiro foi manter um apoio firme ao processo bolivariano ignorando e/ou evitando qualquer contato com os líderes da oposição. Este enfoque, que já era utilizado durante os mandatos de Lula, foi possível em função da marca de Marco Aurelio García, que continua exercendo influência no âmbito das relações exteriores, particularmente no caso da Venezuela.

Isso não foi obstáculo, porém, para a visita ao Brasil dos dirigentes da Alternativa Democrática Venezuelana em diversas oportunidades; estabeleceram contato com líderes da oposição brasileira e até mesmo com dirigentes dos partidos da coalização governante e foram recebidos dentro do Parlamento.

O protagonismo político do Brasil ficou claro mais uma vez durante a nova crise política desencadeada pelos protestos do começo do ano 2014 que tiveram como resultado mais de 40 vítimas fatais, centenas de feridos, mais de mil jovens e estudantes presos, torturados e submetidos a tratamentos desumanos e degradantes. Diante disso, o Ministro de Relações Exteriores brasileiro participou do grupo de terceiros de boa fé, combinado entre o Governo e a Mesa da Unidade Democrática para encontrar uma solução pacífica, democrática, constitucional e eleitoral para a grave crise que a Venezuela vivia nesse momento.

Finalmente, sob o governo de Nicolás Maduro, a política exterior da Venezuela, tal e como aparece delineada no Plano de Desenvolvimento Econômico-Social da Nação 2007-2013, definiu como característica desenvolver uma política baseada na sua visão anticapitalista e anti-imperialista (na prática, mais anti Estados Unidos). Para levar a cabo este projeto, parte-se da criação de um Estado socialista na Venezuela que progressivamente se projete para o mundo inteiro. Na sua luta contra o imperialismo, a Venezuela propõe a criação de um mundo multipolar ou pluripolar, para conseguir a desconcentração de poder dos eixos hegemônicos tradicionais.

Sob estas premissas, o que guia as ações presentes em nossas relações internacionais é a afinidade político-ideológica e não a econômica nem geográfica. Portanto, a prioridade do governo da Venezuela é estreitar relações com os governos das nações que se identificam com seu projeto ou com grupos da sociedade civil, organizações não governamentais, acadêmicos, cientistas e outras personalidades, daqueles países em que existiam governos não afins, sempre e quando esses grupos compartilhem critérios políticos comuns.

VII. Comentários finais:

Por diversas razões, a estreita relação forjada entre Venezuela e Brasil, a princípio, oferece perspectivas interessantes para o nosso país. Os intercâmbios de todo tipo (técnico, científico, econômico, cultural) e associação privilegiada construída ao longo destes anos nos colocam como um “parceiro” singular da potência regional.

Sem ter relação com o já apresentado aqui, o desequilíbrio comercial é tão grande que essas distorções precisarão ser corrigidas em um futuro próximo. Uma boa síntese do que tem sido essa privilegiada relação em termos econômicos mostra que:

•O comércio bilateral quintuplicou desde 2003 até chegar a 5,86 bilhões de dólares nesse ano.

•Em 2011, as exportações brasileiras para a Venezuela somaram 4,591 bilhões de dólares e as importações, 1,269 bilhões. O saldo favorável para o Brasil é de 3,322 bilhões de dólares.

•Nos últimos dez anos, o comércio bilateral passou de US$ 883 bilhões em 2003 para US$ 6,05 bilhões em 2012. (Mazzei, 2015)

Acontece algo similar no âmbito da “Aliança Estratégica” e dos alinhamentos políticos, fato que enfraqueceu nossa definição de país de múltiplas fachadas que é ao mesmo tempo atlântico, caribenho, andino e amazônico.

Nesse sentido, uma mudança de orientação política na Venezuela deveria restabelecer os equilíbrios geopolíticos e próprios da inserção natural da Venezuela no cenário regional. Essa mudança passa por estimular nossa reincorporação à Comunidade Andina; avaliar positivamente os novos espaços de projeção na direção do Pacífico; ressuscitar o esquema de integração do G/3 e relançar uma política assertiva para o Caribe.

As relações entre o Brasil e a Venezuela durante o período de hegemonia da Revolução Bolivariana na Venezuela foram marcadas pelos interesses individuais de cada um dos países, cuja convergência ideológica é apenas aparente, na medida em que os dois processos políticos se identificam com o giro à esquerda que a América Latina experimentou durante a primeira década do século XXI.

Existe una clara diferenciação, porém, entre os interesses estratégicos das duas nações. A atual política externa da Venezuela procura alianças mais ideológicas que pragmáticas para manter a hegemonia interna de seu projeto político, já a política brasileira faz o jogo do esquerdismo do chavismo; mas na prática persegue interesses econômicos dirigidos a se posicionarem como sócio comercial e de investimento privilegiado na Venezuela, com um perfil preeminentemente mercantil.

Ainda que o Brasil tenha desempenhado (e continuará desempenhando) um papel significativo na moderação do conflito venezuelano e na busca por soluções pacíficas e constitucionais para a profunda crise de governabilidade democrática da Venezuela, seus governos sacrificaram valores e princípios democráticos, para privilegiar acima de tudo os interesses econômicos e seu posicionamento internacional como potência regional. A longo prazo, o Brasil terá que se definir entre o pragmatismo mercantil de sua política exterior e o fortalecimento das instituições democráticas na Venezuela.

Diante da transcendência que tem para nosso país a realização de eleições legislativas livres, justas e transparentes no dia 6 de dezembro de 2015, e em função da retomada das relações dos Estados Unidos com Cuba, resta ver se o Itamaraty estará disposto a trabalhar no âmbito hemisférico e internacional com os Estados Unidos, o Vaticano e a própria Cuba, e com organismos multilaterais como a OEA, o Mercosul, a Unasul e a CELAC, para oferecer à Venezuela o apoio necessário da comunidade internacional para reforçar sua democracia, recuperar a economia e manter a paz social diante da profunda crise política e econômica que o país está vivendo, agravada agora pela queda abrupta dos preços do petróleo.

A liderança natural do Brasil na região é algo inquestionável. Passa não apenas pela admissão -sem complexos nem ressentimentos – do seu poder econômico, populacional, geográfico e militar, mas também por assumir uma atitude sem exageros hegemônicos e com objetivos comuns com os países sul-americanos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOERSNER, D. Política Internacional global y venezolana. Quince años de desconcierto (1998-2013). Caracas: Revista SIC, 2013.

CHÁVEZ, H. Discurso perante o Comitê de Representantes da ALADI. ALADI. Sessão Extraordinária 29 fevereiro de 2000.

GONZÁLEZ, E. Las relaciones de Brasil con sus vecinos. Una visión desde Venezuela: De la desconfianza a la alianza estratégica. Brasil, Projeto Plataforma Democrática, 2011.

GONZÁLEZ, E. Del Equilibrio Internacional al Nuevo Mapa Estratégico. Una visión de la actual Política Exterior de Venezuela. Caracas, Conferência realizada no Seminário da Academia de Ciências Políticas e Sociais, 2006.

GONZÁLEZ, E. Las dos etapas de la política exterior de Chávez. Nueva Sociedad No 205, Setembro–Outubro 2006.

GONZÁLEZ, E. La actual política exterior de Venezuela: paradojas improvisaciones e inconsistencias. Conferência realizada no Seminário Construyendo el nuevo orden mundial desde los países emergentes. Cidade do México, julho 2014.

HITNER, V. Balance de las relaciones político-diplomáticas entre Brasil y Venezuela en el período de 2003 a 2011. Cuadernos sobre Relaciones Internacionales, Regionalismo y Desarrollo / Vol. 7. No. 14. Julho-dezembro 2012.

MAZZEI, J. La Política Exterior de Brasil: entre la tradición y la innovación. Caracas. Simpósio De Ciências Políticas, Setembro 2015.

NAÍM, M. Lula: lo bueno, lo malo y lo feo. Moisesnaim.com (versão eletrônica), 2010. http://informe21.com/blog/moises-naim/lula-bueno-malo-feo

NAÍM, M. Lula versus Chávez. Espanha, El País, Madrid 19 de maio 2008.

Outros textos consultados

GONZÁLEZ, E. La incorporación de Venezuela al Mercosur: implicaciones políticas en el plano internacional. Caracas, 2007.

BOERSNER, D. Situación actual y perspectivas de las relaciones entre Venezuela y Brasil. Caracas, Instituto Latino-americano de Investigação Social (ILDIS), dezembro, 2011.

FIGUEREDO, C. Las loas de Lula a Chávez. (versão eletrônica) Analítica.com, 2008. Retirado dia 11 de março de 2011, de http://www.analitica.com/va/internacionales/opinion/7249618.asp

NAÍM. M. El 'Eje de Lula' y el 'Eje de Hugo' (versão eletrônica), 2009. nforme21.com/blog/moises-naim/eje-lula-y-eje-hugo.

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